(Continuação)
Riobaldo Tatarana, o narrador
de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, define com precisão o que seja
o sertão e as coisas que nele acontecem. Muito do que ele diz hoje caiu na boca
do povo e vem sendo repetido sem que se saiba a fonte. Assim, por exemplo,
acontece quando ele descreve o sertão, logo no início do romance: “Lugar sertão
se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristão-jesus,
arredado do arrocho de autoridade” (p. 8). Não é por acaso que os cangaceiros
votavam ódio mortal às cercas, uma vez que elas atrapalhavam as andanças e as
fugas das volantes que os perseguiam. E Riobaldo era um jagunço, em tudo
semelhante ao cangaceiro. Em outra passagem, aliás muito conhecida, diz o
seguinte: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.
Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de
metal...” (p. 19). Mais adiante, volta ao assunto: “Sertão. Sabe o senhor:
sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do
lugar” (p. 35). E ainda: “O sertão é do tamanho do mundo” (p. 73). Afinal, a
conclusão: “O sertão vai repondo a gente pequenino” (p. 312). Aqui ele reflete
a insignificância do homem diante da imensa grandiosidade do sertão que o
cerca.
Mesmo envolvido em combates,
escaramuças e tiroteios, Riobaldo revela permanente preocupação com o divino.
“O que não é Deus, é estado do demônio – afirma ele. – Deus existe mesmo quando
não há” (p. 60). Também as orações o preocupam. “Bem, rezar, aquela noite, eu
não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de
ter algum costume” (p. 114/115). Não obstante, repete com frequência: “Deus
esteja!”.
Sobre a vida e suas surpresas
Riobaldo faz curiosas reflexões, algumas delas hoje de domínio público. Falando
a respeito do sertão, afirma de repente: “Viver é muito perigoso...” (p. 25), É
uma afirmação muito repetida, às vezes com algumas alterações. Em outra
passagem, diz: “Viver é um descuido prosseguido” (p. 70). Mais adiante, afirma:
“No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor
assim... Viver é muito perigoso” (p. 85). Acontecimentos com começo, meio e
fim, bem arrumados, estão mais na imaginação que na realidade. Isso porque “a
vida não é entendível” (p.140).
Mas os tempos de jagunçagem
passaram, o sertão foi ficando menor porque as cidades acabaram com ele. E o
ex-jagunço, agora fazendeiro, curte grande saudade. “Já tenteou sofrido o ar
que é saudade? – indaga ele. – Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de
coração...” (p. 27). Mais adiante: “Moço: toda saudade é uma espécie de
velhice” (p.40). Com os anos a pessoa vive mais no passado. E os fatos antigos
parecem mais nítidos na lembrança. “Tem horas antigas que ficaram muito mais
perto da gente do que outras, de recente data” – concluiu (p. 99).
O sertão de Riobaldo também é
rico em histórias, algumas delas chocantes. É o caso dos jagunços esfomeados
que, cruzando o Liso do Sussuarão, se deparam com um bugio volumoso, de tamanho
acima do comum. “Com outros nossos padecimentos – relata ele, – os homens
tramavam zuretados de fome – caça não achávamos – até que tombaram à bala um
macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo...” (p. 54). E
estavam ainda assando mais quando alguém observou que o tal não tinha rabo, não
era bugio, mas um coitado que por lá andava. “Era homem humano, chamado José
dos Alves. Juro ao senhor!” (idem).
Já o Davidão, jagunço grado,
remediado de posses, começou a ter medo de morrer. Pensou e pensou até
encontrar solução. Contratou com o Faustino, pobre entre os pobres, por dez
contos de réis que este morreria no lugar dele quando chegasse a hora. Faustino
aceitou, recebeu, fechou o negócio. Começa, então, uma fase de muitos combates
e nenhum deles morre, seguem vivos como antes. Até que um dia o Faustino também
começa a ter medo da morte e quer desfazer o trato, devolver o dinheiro, deixar
o dito pelo não dito. Davidão não concorda, discutem, altercam, entram em luta. Surge uma faca e
Faustino acaba varado por ela (p. 84).
Assim é o sertão. Nele tudo
pode acontecer. Nada espanta, nada assusta. Fazendeiro estabelecido, entrado em
anos, Riobaldo se considera feliz, bem tratado e limpo. Porque, diz ele, “homem
limpo pensa limpo!” Deus esteja!
(continua)
/////