(continuação)
Riobaldo, sobrechamado Tatarana
ou Urutu Branco, personagem central e narrador de “Grande Sertão: Veredas”, de
Guimarães Rosa, em certa fase da vida andava invocado com a figura do diabo. É
que corriam notícias de que seus inimigos haviam feito um pacto com ele e que
isso os protegia nos combates. Riobaldo, porém, duvidava da própria existência
do diabo, e, por consequência, não acreditava no tal pacto, uma vez que é
impossível pactuar com o que inexiste. Não obstante, o diabo estava sempre nas
suas cogitações.
Logo na abertura do romance ele se refere ao
bezerro que havia nascido com cara de cachorro e que ria feito pessoa. Mataram,
pois “determinaram que era o demo”. Embora afirme que não gosta do diabo, está
convicto de que ele não existe. Entendia que sábios e políticos deveriam se
reunir em assembleia e declarar “que não tem diabo nenhum, não existe, não
pode. Valor de lei! Só assim davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo
não cuida?!” Embora convencido, gostaria de ver a inexistência formalizada. Um
jagunço que prezava a lei.
Mais adiante, depois de
consultar seu ouvinte, afirma: “E as ideias instruídas do senhor me fornecem
paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é
não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o
Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro,
o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, o
Que-nunca-se-ri, o Sem-gracejos. . . Pois, não existe!” Embora com tantos
nomes, não existe. Mas, como ele próprio diz, de Tinhoso chega!
Outro problema, porém, bem mais
atual e presente preocupa Riobaldo. É que ele, – abismado, alarmado e chocado, –
sente que está gostando de Diadorim mais
que o gostar normal de um amigo. Não sabe como explicar o estranho sentimento.
Afinal, ele é um jagunço, machão, o Tatarana, Lagarta-de-fogo, Cerzidor, Urutu
Branco. E homem, muito homem. “E veja: eu vinha tanto tempo me relutando,
contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se
pertence gostar” – confessava, afirmando em seguida: “Mas ponho minha fiança:
homem muito homem que fui, e homem por mulheres! – nunca tive inclinação pra
aos vícios desencontrados... E eu mesmo não entendia então o que aquilo era?”
Mas havia a meiguice de Diadorim, o cheiro dele, a beleza do rapaz que tanto o
perturbava. “Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas
pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho...” É verdade que
havia certos indícios estranhos, como a habilidade de Diadorim para cortar
cabelos, o costume de só tomar banho sozinho e no escuro e algum “donaire”
feminino. Nada disso, porém, gerou suspeitas em Riobaldo, mesmo porque Diadorim
era duro, valente, corajoso como poucos e não titubearia em matar, se
necessário. Desde o primeiro encontro, ainda garotos, ele demonstrou essa
valentia. “Carece de ter coragem!” – repetia. E, diante da insólita situação,
Riobaldo gemia: “A vida não é entendível!”
Mas a jagunçagem se espalha
pelo sertão e os combates se repetem. Riobaldo é elevado a chefe do grupo,
conquista a confiança de seus cabras e vence a luta contra os Hermógenes. No
desenlace acontecido no Paredão, Hermógenes é morto, bem morto e matado, seu
bando destroçado e os remanescentes perseguidos. No calor da alegria vitoriosa,
no entanto, o vento traz a notícia da desgraça: Diadorim foi morto! Seu corpo é
colocado sobre uma mesa e então a surpresa explode como uma bomba. Diadorim, na
verdade, era uma moça, uma mulher, Maria Deodorina. Riobaldo soluça, as
lágrimas queimam o rosto, chora, uiva de dor e desespero. “Daí, fomos, – relata
ele – e em sepultura deixamos, no cemitério de Paredão enterrada, em campo do
sertão. Ela tinha amor em mim...”
Em seguida repartiu o dinheiro
e retirou o cinturão-cartucheira. “Aí ultimei o jagunço Riobaldo; Disse adeus
para todos, sempremente.
“Resoluto saí de lá, em galope,
doidável...”
(continua)
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