(continuação)
Riobaldo Tatarana, narrador de
“Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, é um dos personagens mais curiosos
da literatura nacional. Homem do sertão, encarna como ninguém o conhecedor
daqueles ínvios dos Gerais mineiros e goianos, falando sobre eles com a
precisão e a familiaridade de quem os percorreu em todas as direções, atento e
interessado, observando e aprendendo. Também impressiona a imensa galeria de
figuras que conhece, desde os coronéis senhoreantes até os mais humildes dos
viventes sem nome: fulão, sicrão, beltrão e romão. E surgem então os mais
desusados e estranhos nomes e alcunhas, revelando a portentosa imaginação
criativa de Guimarães Rosa. É um livro tão amplo, repleto de fatos e figuras,
que me parece impossível ao leitor, por dedicado que seja, apreendê-lo em toda
sua grandeza.
Sensível à imensidão do
ambiente que o cerca, Riobaldo sente com intensidade a pequenez do ser humano
naquele meio e conclui que “esses Gerais em serras planas, beleza por ser tudo
tão grande, repondo a gente pequenino”, porque “homem a pé, esses Gerais
comem.” Em outra passagem, afirma: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos
carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de
morador...” Isso se explica porque “o sertão está em toda parte.” E tem suas
leis próprias: “Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo,
quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...” Mas
sertão é mais, muito mais. “Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais
forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso.” Tudo lá é tão parado
que “no sertão, até enterro simples é festa.” Como homem inteligente, deseja
sair do sertão: “A gente tem de sair do sertão!” Mas isso não é fácil, então a
solução é uma só: “Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...” O
sertão, enfim, á uma jornada, um caminho, é uma “travessia perigosa, mas é a da
vida. “ Como a vida, “se alteia e se abaixa”, mas “as curvas estendem (o olhar)
para sempre mais longe” e “ali envelhece vento...” Sempre alimentando a
esperança, a vida vai passando e a velhice chegando. Ninguém como Riobaldo
entende o sertão.
Mais adiante, em seu perlongado
monólogo, Riobaldo se refere ao Coronel Rotílio Manduca, em sua Fazenda Baluarte.
E cria, então, um dos tantos enigmas que Guimarães Rosa semeou em seu romance.
Segundo os intérpretes do escritor, Rotílio Manduca teria sido usado por ele
como modelo para o terrível Zé Bebelo, chefe jagunço que pretendia limpar o
sertão da jagunçagem. E assim, Manduca e Bebelo, o modelo e o personagem,
passam a conviver na mesma história, lado a lado, deixando o leitor diante de
uma questão insolúvel. Rotílio Manduca, segundo se dizia, era um pistoleiro do
vale do São Francisco, hábil na facada e no tiro, a quem atribuíam mais de
duzentas mortes. “Sequinho, espigadinho, vestido cidadão, com mãozinhas
pequenas, pezinhos, e do ar sempre assustado”, transformara-se numa espécie de
justiceiro daquelas veredas, fazendo justiça sumária e com as próprias mãos.
Não obstante, admirava os escritores e poetas, lia os clássicos e cultivava
amigos intelectuais. Deixava de lado o gibão de couro, envergava ternos de
linho brilhante e desfilava por Belo Horizonte e pelo Rio de Janeiro, onde era
visto em ilustres companhias, entre as quais Medeiros e Albuquerque, o ministro
Ataulfo de Paiva, do STF, e o professor de Finanças Alberto Deodato, em cuja
casa se hospedava. Relatava este último que Rotílio aparecia sem aviso,
portando imensa quantidade de disfarces (batinas, bigodes e barbas postiços,
óculos escuros de vários modelos, perucas etc.), instalava sua rede na varanda
e lá permanecia por alguns dias. Bem vestido e elegante, frequentava lugares da
moda da antiga capital e, de repente, sem aviso ou despedida, anoitecia e não
amanhecia. Por ironia da sorte, foi assassinado a facadas enquanto dormia no
camarote de um navio-gaiola, embalado pelas águas do Velho Chico. Não se sabe
onde termina a verdade histórica e começa a lenda, mas isso se explica porque –
como diz Riobaldo – “tudo naquela parte dos Gerais era ilusão de haver e não se
saber. O mundo ali tinha de ser e de se recomeçar...”
F I M
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