Conheci Silvana
Paluzzi em Fortaleza. Achava-se de férias. Vivia (ou vive) em Roma (pai
italiano e mãe cearense). Pretendia conhecer pessoas de letras daqui. Não sei
como chegou ao meu endereço virtual. Apresentou-se: Silvana Pires Magalhães Paluzzi, leitora de Dante, Dino Buzzati,
Giovanni Papini, Umberto Eco, Italo Calvino e uma infinidade de nomes
esquisitos. Tencionava me impressionar, é claro. Não achava interessante
começar pelo singular e, só depois, chegar ao plural? “Não posso levá-la à
presença de duas centenas de homens e mulheres. Comece por mim”. E lhe dei meu
endereço residencial. Veio. Deve ter sido de táxi.
A moça não
esqueceu a nossa língua. Rabisca contos e poemas, em português e italiano. Examinei
alguns, de relance; todos ainda imaturos. Desculpou-se: “São exercícios de
muito antes de me mudar para a Itália, em 2010”. Prometeu trazer peças saídas
do forno recentemente. Mudei o foco
da conversa: “Vamos deixar você de lado, por dois minutos. É a vez dos nossos
concorrentes”. Então ela me bombardeou de perguntas. A primeira me deixou apalermado:
“Quem são os cem melhores poetas brasileiros mortos ou com idade avançada?” Busquei
uma relação já defasada, porém demasiadamente extensa (tem quase 500 nomes). Iniciei
a leitura dos nomes, de modo seletivo: Augusto dos Anjos. E ela completava com
adjetivo ou frase curta: “Genial!” Fulano de tal: “Palavroso demais”. Desconhecia
a maior parte dos 200. Mudei novamente o foco da conversa. Pensei em lhe propor
a leitura de três obras recebidas recentemente: O fabricante de histórias, (Manaus: Edições Muiraquitã, 2012), de
Everardo Norões; Transitório diamante,
(Sobral: Gráfica Egus, 2013), de Inocêncio de Melo Filho; e Curso de arte poética (Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2013), de Jorge Tufic. “Quer ler os três? Na próxima semana
faremos breve análise. Topa ser minha aluna, por uns dias?”
Quando
ela, pela segunda vez, me visitou, eu afagava os Corvos de alumínio, de Francisco Carvalho. Tem autógrafo, datado de
sete de janeiro de 2004. A menina tem boa memória: “Este consta da lista menor”.
Sorri: “Sim; e eu o ponho entre os primeiros”.
A fim de
não nos perdermos em devaneios (a leitura de um só verso do poeta poderia nos
levar ao êxtase, a exemplo destes – “Pássaros
de asas molhadas / pousam nos raios do sol”), propus seguirmos a ordem
alfabética dos nomes dos autores. Então ela se apossou de O fabricante de histórias, de Everardo Norões. Na semana anterior
eu lhe afirmara: “Mais um cearense de peso”. Ela mergulhou os olhos em meu
peito. Não sei se havia sisudez nela ou se ria por dentro. Tentei pôr ordem na
casa: “Sim, de peso, embora nunca o tenha pesado e muito menos visto”. Ela
gargalhou. Aproveitei a oportunidade e passei a fazer propaganda de minha
terra: “Aqui há milhares de poetas e poetastros, como em todo lugar. Há também prosadores
de ficção, e isto se dá em qualquer lugar. O maior número é de contistas e
cronistas; romancistas são poucos. Everardo, também poeta e dos bons, pode ser
posto ao lado dos melhores”. Calei-me, de propósito. E ela tomou a palavra: “Os
23 relatos são todos muito bons”. Completei: “Sim, curtos ou concisos”. Ela me
viu tocar no gravador e caprichou na exposição da análise: “Os de maior
extensão têm seis a oito páginas: ‘O exercício do asco’ (que belo título, hem,
Nilto!), ‘Na varanda, sobre o bulevar’ (ele é bom de título mesmo) e ‘... de
dia, sempre noite... ’.
A fim de
medir sua capacidade de interpretar texto, indaguei: “Deixando de lado o
tamanho, que tal o estilo ou a linguagem?” Silvana folheou o opúsculo: “Escreve
bem, sem se assemelhar a gramático. Ou ensaísta. Veja esta frase: ‘A mosca cola-se ao vidro da janela’”. Virou-se
de novo na minha direção: “Ele não poderia ser menos gramático e usar a próclise?
Assim, teria evitado o cacófato”. Revelei-me áspero: “Não entendi”. Ela não
abandonou a suavidade na voz: “Ficaria assim: ‘A mosca se cola ao vidro... ’”. Repudiei
a ideia. Talvez ficasse feio: cassecola.
E desfiei uma corda de chavões: “Percebe-se nele certo malabarismo verbal, brincadeira
com os vocábulos, as sílabas. E esse modo de talhar a frase só pode vir de
poeta de talento”. Tomei-lhe o objeto e recitei: “Mosca: ao mesmo tempo ponto de mira e inseto (insetalvo, alvinseto?) da
espécie”... (p. 20).
E os
temas? Ah! Everardo Norões não se repete ou não imita reportagens de crimes.
“Entre moscas” é magistral. Visse este trecho: “Giro a chave, para que ela não fuja durante a noite e eu não perca sua
companhia, pelo menos durante os presumíveis 21 dias que ainda lhe restam”.
Passamos
ao Transitório diamante, de Inocêncio
de Melo Filho. A garota se antecipou: “Nem pode ser chamado de livro, tal a
exiguidade de folhas do impresso. Apenas 32”. Retruquei: “Apesar disso, podemos
chamá-lo, este minúsculo diamante, de pedra preciosa”. Ela sorriu: “Não
exagere, senhor Nilto Maciel. Não gosto de ser enganada”. Mostrei carranca, dessas
de assustar criança: “Ora, ninguém consegue enganar o leitor. Nem o mais astuto
escritor ou o menos honesto editor”. Entendeu a brincadeira: “Achei as frases um
tanto prosaicas. Assim são as primeiras linhas do conjunto: ‘Levanto-me com o novo dia / Fico a
contemplar os meus contemporâneos / Perco-me no vácuo... ’ Saí em defesa de
meu amigo de Sobral: “Logo, no entanto, ele se liberta desse prosaísmo e se
deixa conduzir em vôo livre pelos campos da Poesia: ‘Perco minhas andorinhas de asas cortadas / Não as encontro’. Silvana,
no entanto, não me deixava sossegado: “Não se trata de poeta de primeira linha.
Ou estou enganada, mestre Nilto?” Vasculhei o céu, através da porta. Um gato
passava no rumo do infinito: “Quiçá ainda seja cedo”. Ela revidou: “Não, não é
tão cedo. A tarde anda pelo horizonte...” Referia-me ao tempo do poeta. Seu
artesanato se acha em plena gestação ou ebulição. A moça me recriminou: “Eita,
palavreado antiquado, Nilto!” Exibi as garras: “O meu ou o seu?”
Por
último, chegamos ao Curso de arte poética,
de Jorge Tufic. Não perdi tempo: “O bom deste compêndio se encontra na extrema
simplicidade: explicações objetivas e amostra de poemas, em suas variadas
espécies (balada, sextina, triolé, soneto, pantum, vilanela etc). Nada de
teorizações acadêmicas, passeios filosóficos e viagens aos primórdios da Poesia.
Nenhuma referência a Platão, Aristóteles, Ezra Pound, Mallarmé e outros. Tufic
vai aos nossos indígenas, às aldeias, às tribos amazônicas. Que devem ser muito
anteriores aos gregos”.
Ela espiava
para mim, embasbacada: “Decorou tudo isso?” Não, Silvana Paluzzi, não consigo memorizar
nem sequer um verso de Camões. E completo agora meu discurso: Contenta-se o
poeta com pouco e expõe, resumidamente (livrinho de 100 páginas), o corpo e a
alma da Poesia, em breves lições de quem também é cultor do verso retocado.
A visitante
arriscava espantar os “corvos de alumínio”, que bicavam a tábua da mesinha.
Prossegui assim: O tomo se divide em três partes: “A poesia através dos
tempos”, “A legislação teórica” e “O mosaico e a esfinge”. Não deixou, porém,
de buscar apoio nos ensinamentos (“na parte eminentemente técnica deste
trabalho”) de alguns “professores”, como Nelly Novaes Coelho, Geir Campos e
Raul Xavier. Não deve ter nem chegado perto do célebre Tratado de versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos. A
título de ilustração, transcrevo um trecho dele: ‘O que mais
convém ao principiante, é não se preoccupar muito com o que é a poesia em si,
procurando de preferencia surprehender o segredo do verso e assenhorear-se da
sua mecânica’.
Silvana manuseou
a publicação de Tufic e me interrompeu: “Gostei muito desta frase: ‘... a poesia é indefinível, o verso um artifício
e o poema um desafio, uma armadilha, algo parecido com a figura emblemática de
um touro que se tomasse de asas, para voar’”.
Chegado o
final da tarde, declamei outra pérola de Francisco Carvalho: ‘A vida é uma loba que nos alimenta, / nos
ressuscita e nos inventa. /Loba de Roma, loba de Rômulo, loba da rima, / loba
da eternidade que nos rumina./ Loba que amamenta os grilos / com o leite que
vasa de seus mamilos. / A vida é uma loba peluda / que apascenta os chacais,
pastoreia / os vales de espuma do nirvana / sob as pálpebras de Buda’
(“Loba”).
Silvaninha
parecia chorar. Abracei-a, feito pai a se despedir de filha no cais e, sem
lágrima, vê o mar se confundir com o céu. “Vá, que é tarde”. E senti os seus
macios seios em meu peito ardente.
Fortaleza,
24/27 de agosto de 2013.
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