Conheci
José Albano (a poesia dele) em meu tempo de descobertas (o mesmo tempo do
conhecimento da boa literatura, do marxismo, do sonho de ser livre e da fantasia
nos olhos das meninas). Quanto mais o alazão fogoso corria, mais livros se abriam
às minhas aspirações e mais pupilas se fechavam ao meu prazer. Então, em tarde
muito distante daquelas manhãs, lembrei-me de versista cearense devotado a
escrever em tons envelhecidos. Corri ao quarto dos fundos, onde vivem alquimistas
tão antigos quanto ele. Apanhei suas Rimas
(Universidade Federal do Ceará, 1997) e me entreguei à soletração de umas odes,
em voz alta: “Poeta fui e do áspero
destino / Senti bem cedo a mão pesada e dura. / Conheci mais tristeza que
ventura / E sempre andei errante e peregrino”. Então bateram à porta,
com impaciência de adolescente. Corri, cansado e sonolento, ao portão de metal.
Meti a cara no olho mágico: criatura talvez provinda da mais distante esfera espiava
para mim, súplice e bela como as donzelas de antigamente. E se chamava
Valquíria Monterosso. Trazia, nos braços, quatro feixes de papel: Luto doce, de Tatiana Morais; A liberdade é amarela e conversível, de
André Giusti; O senhor das estátuas,
de Pedro Du Bois; e Muitos caminhos e uma
vida, de José de Fátima Silva. Abri a porta e acordei definitivamente: a
moça me visitava pela segunda vez (a primeira se dera no início de julho) e os impressos
por ela trazidos eu lhe tinha emprestado. Quanto a José Albano, tinha nascido
em 1882, em Fortaleza, e se findara em 1923. Tão moço e tão trágico! E mais não
informo, que isto e muito mais estão nas brochuras e na Internet.
Na
sua curiosidade de aprendiz, Valquíria pediu licença (ou não pediu?) e se
apossou dos versos quinhentistas de Albano. “Nunca ouvi falar dele”. Tentei ser
carinhoso: “Não nos é possível saber de tudo. Quando sabemos de bons vates,
estamos abençoados”.
Mudei
bruscamente de assunto: “Conseguiu examinar as quatro obras?” Entregou-mas:
“Sim, senhor”. Folheei o opúsculo de André Giusti: “Trata-se de contista
nascido no Rio de Janeiro”. A estudante não parecia nada interessada na
biografia do jovem. “Não o conheço, como desconheço a maioria das pessoas de
quem recebo escritos”. “E como se dá isto?” Brinquei: “Sou muito conhecido nas
diversas sociedades secretas de escritores. Mandam-me alfarrábios de todos os
feitios, com dedicatórias pomposas (às vezes, me chamam de guru ou mestre). Em
troca, querem elogios “pamposos”. Uns pimpões! Como nunca me atrevo a tecer loas
à toa, terminam por excluir meu nome de suas listas”. “E esse André tem
futuro?” “Só as pitonisas sabem, minha querida”.
Para
não me perder em considerações de teórico do inconcebível, agarrei o papiro,
abri-o e me pus a parolar: “André Giusti transita com simplicidade tanto pelo
conto mais abreviado (“Vale do Paraíba”) como por aqueles mais cobertos de
matos e permeados de veredas (“A minha forma de chorar sua ausência esta
noite”). Quanto à linguagem, não é possível aproximá-lo de um Eça ou de um
Graciliano. Preocupou-se com o enredo;
esqueceu-se do estilo”. “E isso é bom ou ruim?” “Vem de longe essa pendenga. O
ideal seria boa história urdida em termos e expressões de fácil entendimento
pela maioria”.
Conversamos
mais meia hora a respeito de André e seu pergaminho e passamos a Pedro Du Bois.
“Pelo visto em suas estantes, esse Pedro é muito amigo seu”. Não costumo ufanar-me
de nada, muito menos de amizades: “Na verdade, nunca o vi. No entanto, isso não
me tolhe a vontade de explorar sua poesia, assim como não impediu nem impede de
dedicar algumas horas a Homero”. Virei as folhas de O senhor das estátuas, com certo interesse nas mãos e nos olhos:
“Esse sabe fazer poesia, professor. Como se tivesse fôrma em casa ou na cabeça”.
Completei: “É como se fizesse tijolinhos, rapadurinhas, em moldes de madeira!”
“Sim, nunca uma rapadura de metro ou mais, doce do tamanho de mesa. Apenas
docinhos para o dia-a-dia”. Recordo-me de uns versículos lidos por ela: “a imobilidade do senhor / diante do abismo”.
“Qual o sentido disto?” “Talvez o escultor diante do insondável; talvez Deus
diante do Nada”. Então Pedro Du Bois está aprovado? Por mim e por quem quiser
abrir os olhos.
Fizemos
pausa necessária para ingestão de líquidos e guloseimas. Convoquei minha eterna
Alice, perdida no país dos fogos e dos artifícios, a preparar acepipes para
minhas visitas e seu amo. “Podem vir”. Sentamo-nos ao redor da ampla mesa:
jarra com néctar de mamão e cenoura e outra de laranja com morango. Ao derredor
dos copos, torta de damasco e outra de chocolate. Relembrei-me de José Albano:
“Amar é desejar o sofrimento / e
contentar-se só de ter sofrido, / sem um suspiro vão, sem um gemido, / no mal
mais doloroso e mais cruento”. Ela suspirou, enquanto sorvia gole de
refresco: “Esse pobre poeta sofria muito, professor!” “Por isso, morreu tão
cedo”.
De
volta à sala, ainda gaguejei soneto de Albano e me fiz uma advertência:
restavam-nos milhares de dias e noites de fulgores. “Apreciei também as frases
dessa poetisa”. E mostrei Luto doce, de
Tatiana Morais. “De quem se trata?” “Também não conheço. Na aba há a informação
de ter nascido em Assu, Rio Grande do Norte”. “E quem mandou?” “Também disso
não sei, minha querida”. A visitante recitou trecho de salmo: “Sinto dormências de um corpo sem retoques /
Sem manchas reparáveis / Não dobra / Não flexiona”. Fitou-me, com segurança:
“O senhor não vê lacunas entre os vocábulos e as frases?” “Nem toda poesia é
completa, no sentido de ocupar todo o espaço em volta. Há até poesia feita somente
de sons ou de impalpáveis fímbrias de vida”. Na verdade, eu quis enrolar (no
sentido de embromar) a garota.
Fui
até a porta de acesso à garagem. Soberbo gato branco passava entre o horizonte azul
e a eternidade sem cor. Virou-se para mim: de suas íris irradiavam-se rutilâncias
de fins e confins. Desinteressou-se de minha pequenez e escapuliu no rumo do
quintal ou do nunca mais. “Uma beleza, Valquíria Monterosso!” Eu me sentia
cansado como o sol àquela hora. “Você gosta de cordel?” Sim, gostava, mesmo dos
mais folclóricos. “Conheci alguns deles, desde os mais antigos”. “Leandro Gomes
de Barros?” “Sim, um pouco”. Para não deixar passar em branco os acordes de
José de Fátima Silva, expliquei: “Ele homenageia um homem dedicado à educação e
aos livros, o famoso professor Francisco Assis Mattos”. “Adorei o folheto. Esse
professor Mattos é danado mesmo!” Declamei estrofe: “É uma grande figura / Que bem honra sua história / Na cidade Bela Cruz
/ Nasceu cantando vitória / Com nome imortalizado / Para ficar na memória”.
Do
sol não mais se viam as labaredas e ainda o calor me amortecia. Contemplava
aquela menina tão alegre e sentia pena de mim. “Comigo quantas vezes imagino: /se
é tão doce na terra o amor humano, /que não será no Céu o amor divino?!” Ela se entusiasmou de novo: “É
dele?” “Sim, é de José de Abreu Albano”. “O senhor me empresta as Rimas?” “Empresto-lhe, dou-lhe, cedo-lhe,
entrego-lhe todos os cânticos do tecelão patrício e, ainda, me derramo aos seus
pés, ó dulcíssima Valquíria de meu sonho nórdico”.
E assim
se findou mais um dia de minha vida de leitor de versos e prosas, passados e
presentes.
Fortaleza,
31 de julho de 2013.
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