(Cendrars por Modigliani)
Como é sabido, a França fascinou gerações de
intelectuais brasileiros e para muitos foi a segunda pátria ou a pátria
intelectual. Mas, em sentido oposto, o Brasil também tem exercido forte
fascínio sobre intelectuais de língua e formação francesas, como foi o caso do franco-suíço
Frédéric Sauser, que adotou o nome de Blaise Cendrars (1887/1961), apaixonado
pelo nosso país, sobre o qual muito influiu e, em contrapartida, foi
influenciado pelo resto de seus dias. Misto de escritor, poeta, aventureiro e
andarilho, ele se ligou ao Brasil de forma definitiva e foi um de seus grandes
divulgadores na Europa. Só não realizou mais porque as circunstâncias não o
favoreceram.
Nascido em La Chaux-de-Fonds, na Suíça, radicou-se em Paris. Andou pelos quatro cantos do mundo, envolvido nas mais curiosas aventuras, algumas talvez imaginárias, e lutou na I Guerra Mundial, quando perdeu o braço direito, decepado por um obus. Convidado pelos modernistas, veio pela primeira vez ao nosso país e aí teve início uma paixão que durou a vida inteira e motivou outras vindas, todas repletas de experiências e encantamentos, e que provocaram diversos livros de autores brasileiros a respeito dele e outros tantos dele próprio sobre o Brasil. Surge agora, em edição da Companhia das Letras (S. Paulo – 2006), um livro que revela muito dessa ligação entre o poeta e nossa terra, escrito por um francês que também ficou “amarrado” ao Brasil. Trata-se de “Hoje Cendrars parte para o Brasil”, de Jérôme Michaud-Larivière, roteirista de cinema e romancista.
O livro é de gênero indefinível. Tem muito de
biografia sem ser biografia; tem bastante de romance mas não é romance; pode
ser visto como relato de viagens sem se encaixar no gênero. É um misto disso
tudo, acrescido de ensaio literário, pensamentos, devaneios poéticos e retratos
de um país que o autor procurou ver e entender. Sua intenção inicial, como
admirador e estudioso de Cendrars, foi a de repisar os passos do escritor em suas
andanças por aqui, tentando encontrar rastros de sua passagem, marcas de sua
presença e ecos de suas palavras. Isso quase oitenta anos mais tarde. E o
resultado, como a leitura demonstra, superou todas essas intenções, gerando um
livro delicioso e revelador.
O convite dos jovens modernistas não poderia
chegar em momento melhor. Desencantado com as letras, Cendrars andava farto dos
gabinetes e das quatro paredes, não via mérito em ficar enfurnado, ansiando por
viagens, aventuras, vida. Estava ali uma oportunidade única para fugir à vida
confinada e solitária de escritor. Ressurgiram todos seus planos e sonhos
antigos; a atração imensa que o país exercia sobre ele cresceu ainda mais,
alimentada pelo “discurso utópico europeu sobre a América e o Brasil”. Já se
sentia um Rimbaud dos tempos modernos. Não escrever, não ler – só viver! –
proclamava. – Cruzar a linha do equador a bordo de um transatlântico, deixando
para trás os mares encapelados, as neblinas pesadas, os frios constantes, os
ventos gélidos, tudo isso lhe provocava arrepios de satisfação.
E assim, aos 37 anos de idade, em 1924, o
“pirata do Lago Léman” – como dizia Cocteau – embarcava para o Brasil numa
travessia penosa e modorrenta que durou vinte e três longos dias. Navio lerdo e
fumacento, vencendo devagar as milhas que o separavam do destino que o poeta
ansiava por avistar. Até então, afirmava ele, já havia exercido 36 ofícios
diferentes, entre eles uma ponta num filme sobre mortos-vivos, numa cena
aterradora, e “estava pronto para qualquer outro amanhã”. Sonhava alto,
imaginando fazer cultura, cinema, pesquisas e, de quebra, fortuna no Brasil que
“estava cheio de dinheiro”. Naquele “ir e vir sem fim, procurava o lugar e a
fórmula”. Quanto a esta, já a dominava; quanto àquele, acreditava estar aqui em
nosso país. Tudo isso, 77 anos antes deste livro.
Recebido no porto do Rio pelos modernistas, não
teve a mesma sorte em Santos, onde foi barrado em virtude de seu defeito físico
e do aspecto deplorável de suas roupas. Humorado, reconhecia que os
funcionários estavam certos: “O Brasil precisa de braços e não de aleijados!” –
declarou aos amigos constrangidos.
Nada, ou quase nada, se realizou. Os negócios
falharam, as pesquisas foram um fracasso e as viagens pelo país não se
estenderam como desejaria. Na verdade, não foi além de Minas Gerais. O projeto
de um filme sobre o Brasil, que deveria ser 100% brasileiro, também não vingou.
Em compensação, a escrita de que tanto desejava se livrar progrediu e vários
livros resultaram de suas visitas ao Brasil. Como diz o autor, Cendrars veio
poeta e retornou romancista.
Gasto o pouco dinheiro que trouxera, Cendrars
viveu dias angustiosos. Esteve prestes a vender até a máquina de escrever. Os
modernistas, porém, arranjavam fórmulas de obter recursos para ele:
conferências e entrevistas pagas, empréstimos e financiamentos (a fundo
perdido?) e, com certeza, doações. Também pedia adiantamentos a editores
franceses por conta de livros que escreveria, alguns deles jamais escritos. E
assim, sentindo-se um miserável, um “duro” em meio aos ricaços, foi vivendo.
Morou por vários meses no Copacabana Palace, no apartamento 101, que não existe
mais, apaixonando-se pelo carnaval carioca que nunca saiu de sua lembrança. Em
São Paulo, que chamava de Saint-Paul, apaixonou-se pela megalópole, andou por
ceca e meca, vasculhou tudo, centro, bairros, periferia, olhando, observando,
apalpando, cheirando. Estreitou as ligações com Oswald de Andrade e Tarsila do
Amaral, com D. Olívia Guedes Penteado, com Paulo Prado, que teria custeado sua
vinda, e a esposa Marinette. O casal lhe emprestou um Ford e nele Cendrars palmilhou ruas e estradas, dirigindo com seu
braço único, fazendo pose e posando para fotos. Para completar, presenciou
cenas chocantes da Revolução de 1924, chefiada pelo general Isidoro Dias Lopes,
e contemplou, desolado, a destruição em Saint-Paul. Com Paulo Prado e a esposa,
refugiou-se na fazenda. Esgotadas as andanças pelo Rio e São Paulo, tratou de
se embrenhar pelo interior. Tudo o deslumbrava e as exclamações superlativas se
sucediam: “Maravilha! Lindo! Extraordinário!”
No interior paulista, contemplou extasiado o mar
de café com as intermináveis fileiras que desciam e subiam, onde alguém que se
perdesse não conseguiria escapar. Ficou fascinado pelo ouro verde que brotava
do solo com tão absurda abundância. Hospedou-se na Fazenda Morro Azul, em
Limeira, e jamais esqueceria da casa senhorial, das palmeiras esguias, da
obscura e misteriosa floresta vizinha, dos pássaros coloridos e cantantes, do
céu pintalgado de estrelas. Lembranças que aparecerão em seus livros de onde “é
a vida mesma que corre e escorre... Como mel, do bom mel” – como afirma o autor
(pág. 200).
Acontece, em seguida, a excursão a Minas Gerais
com os modernistas, o ponto mais alto da viagem. “Faziam parte da comitiva –
informa Larivière – Tarsila, Oswald e seu filho Nonê, Mário de Andrade, Olívia
Guedes Penteado (“Nossa Senhora do Brasil”), e ainda Gofredo da Silva Telles,
seu genro (a quem devo algumas fotos da época do périplo), assim como René
Thiollier, que Cendrars conhecera em Paris e que gostava de apelar para suas
origens francesas (para agradar mais ao poeta?), todos faziam parte do grupo,
todos preparados para longas jornadas de trem pelo interior do país até o
coração das Minas Gerais...” (págs. 144/145). Longas paradas, horas e horas
sentados, conexões complicadas, pó, calor, cansaço, sujeira, vencendo um
trajeto repleto de curvas e cotovelos. Mas Cendrars tudo observava, exaltando a
beleza, o verde, o relevo, as matas, o céu azul, como se abrisse os olhos dos
brasileiros para seu próprio país. Ensinava brasilidade aos brasileiros,
inclusive a (re)descoberta do barroco e
do Aleijadinho, sobre quem planejou um livro que também gorou. Mário de
Andrade, interessado, trocava idéias e participava; Oswald, meio doente e
emburrado, permanecia quieto em seu canto; Tarsila tudo registrava em seus
blocos no seu estilo primitivista e puro.
Em São João Del-Rey se hospedaram num hotel que
não existe mais e que o autor procurou em vão. Tiradentes foi o deslumbramento.
Imaginaram, na ocasião, criar uma associação pioneira para a preservação do
patrimônio artístico e até os estatutos foram escritos mas a idéia não vingou.
Tarsila até se comprometeu a aprender a arte da restauração. Entre notas e mais
notas, o poeta recolheu tudo que pôde sobre Antônio Francisco Lisboa. Cada
igreja, cada casarão, cada rua, cada escultura merece atenta observação e agudo
comentário. Parecia beber o que via, degustando até o último gole. E as
andanças os levam a Barbacena, Sabará, Mariana, Congonhas do Campo, deixando
marcas, lembranças profundas que vão ressurgir com toda força em livros que
hoje seriam considerados de autoficção. Foi com sincera dor de coração que se
despediu.
Visitou depois Lagoa Santa, nas proximidades de
Belo Horizonte, onde fizera contato com os modernistas locais. Na cidade do Dr.
Lund teria recebido uma área de terras – as terras de Cendrars. Como tudo, ou
quase tudo, tais terras não foram localizadas por mais que o autor as
procurasse, rebuscando em repartições e cartórios. Mais um sonho do poeta que
não se realizou ou as terras seriam imaginárias? Mistério que Larivière não
conseguiu desvendar.
Três foram as viagens de Blaise Cendrars ao
Brasil. A primeira foi em 1924, quando permaneceu sete meses e meio mas
exagerava para nove; a segunda foi em 1926, tendo permanecido por seis meses, e
a terceira em 1927/1928, estendendo-se de agosto a janeiro. Foram menos de dois
anos vividos no Brasil, mas as lembranças perduraram por mais de meio século,
de tal forma que nosso país se agregou de maneira definitiva ao universo do
poeta. “Acontece que o esquecimento se revela impraticável – escreveria ele – porque
as lembranças são muito ricas, muito fortes, ou traumáticas...” (pág. 201).
Retornando à França, escreve e escreve, como que
impulsionado pelo “milagre brasileiro”. Consegue vencer o “sofrimento de
escrever” e em quarenta e cinco dias termina um livro gestado há quinze anos.
Obtém imenso sucesso. “O Ouro” recebe elogios da crítica, chegam cartas de
leitores, convites para entrevistas e bastante dinheiro. Melhora de vida, é
visto em lugares “chiques”, bem vestido e elegante. Publica um ensaio sobre
Lampião, figura de bandido exótico que o fascinava. E vão aumentando seus
livros sobre o Brasil: “Feuilles de Route”, “Sud Américaines”, “Aujourd’hui”,
“La vie dangereuse”, “L’homme fondroyé”, “Bourlinguer”, “Le lotissement du
ciel”, “Brésil, des hommes sont venus”, “Trop c’est trop” e “Blaise Cendrars
vous parle”, reunindo as longas entrevistas concedidas a Michel Manoll. Traduz
para o francês o livro “A Selva”, de Ferreira de Castro, sob o título de “Forêt
vierge”. Em conversas ou escritos, nosso país esteve sempre com ele,
divulgando, enaltecendo, ensinando. “Ninguém conhece um país assim!” –
proclamava enfático. Foi incansável divulgador de Tarsila do Amaral, do
Aleijadinho e dos autores brasileiros na Europa. Tornou-se admirador sincero e
bom conhecedor das obras de Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda e outros que
tentaram uma interpretação do país. Admirava o povo brasileiro e vaticinava
grande futuro para ele, ainda que com todos os obstáculos apontados por Paulo
Prado. Sem falar na influência exercida sobre os brasileiros nas obras
produzidas após suas visitas. Amou o Brasil como poucos.
Muitas obras sobre ele surgiram, tanto de
autores brasileiros como estrangeiros, aqui no Brasil. Aracy Amaral, Alexandre
Eulálio, Maria Teresa de Freitas, Claude Leroy, Flückiger, Adrien Roig
escreveram ou organizaram obras sobre o poeta e suas ligações brasileiras, sem
falar em reportagens, crônicas, artigos, entrevistas e matérias jornalísticas
variadas. Existe sobre ele, no exterior, copiosa bibliografia e suas Obras
Completas foram publicadas pela Editora Denoël. Em meu livro “As antecipações
de Lobato” abordei as visitas e influências de Cendrars em um dos ensaios.
Todos esses caminhos, passo a passo, com
infinita paciência e com olhos de ver foram refeitos por Larivière neste livro
admirável e que merece detida atenção.
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