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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Ninguém conhece um país assim (Enéas Athanázio)

(Cendrars por Modigliani)

                                                                                  
Como é sabido, a França fascinou gerações de intelectuais brasileiros e para muitos foi a segunda pátria ou a pátria intelectual. Mas, em sentido oposto, o Brasil também tem exercido forte fascínio sobre intelectuais de língua e formação francesas, como foi o caso do franco-suíço Frédéric Sauser, que adotou o nome de Blaise Cendrars (1887/1961), apaixonado pelo nosso país, sobre o qual muito influiu e, em contrapartida, foi influenciado pelo resto de seus dias. Misto de escritor, poeta, aventureiro e andarilho, ele se ligou ao Brasil de forma definitiva e foi um de seus grandes divulgadores na Europa. Só não realizou mais porque as circunstâncias não o favoreceram.


Nascido em La Chaux-de-Fonds, na Suíça, radicou-se em Paris. Andou pelos quatro cantos do mundo, envolvido nas mais curiosas aventuras, algumas talvez imaginárias, e lutou na I Guerra Mundial, quando perdeu o braço direito, decepado por um obus. Convidado pelos modernistas, veio pela primeira vez ao nosso país e aí teve início uma paixão que durou a vida inteira e motivou outras vindas, todas repletas de experiências e encantamentos, e que provocaram diversos livros de autores brasileiros a respeito dele e outros tantos dele próprio sobre o Brasil. Surge agora, em edição da Companhia das Letras (S. Paulo – 2006), um livro que revela muito dessa ligação entre o poeta e nossa terra, escrito por um francês que também ficou “amarrado” ao Brasil. Trata-se de “Hoje Cendrars parte para o Brasil”, de Jérôme Michaud-Larivière, roteirista de cinema e romancista.

O livro é de gênero indefinível. Tem muito de biografia sem ser biografia; tem bastante de romance mas não é romance; pode ser visto como relato de viagens sem se encaixar no gênero. É um misto disso tudo, acrescido de ensaio literário, pensamentos, devaneios poéticos e retratos de um país que o autor procurou ver e entender. Sua intenção inicial, como admirador e estudioso de Cendrars, foi a de repisar os passos do escritor em suas andanças por aqui, tentando encontrar rastros de sua passagem, marcas de sua presença e ecos de suas palavras. Isso quase oitenta anos mais tarde. E o resultado, como a leitura demonstra, superou todas essas intenções, gerando um livro delicioso e revelador.

O convite dos jovens modernistas não poderia chegar em momento melhor. Desencantado com as letras, Cendrars andava farto dos gabinetes e das quatro paredes, não via mérito em ficar enfurnado, ansiando por viagens, aventuras, vida. Estava ali uma oportunidade única para fugir à vida confinada e solitária de escritor. Ressurgiram todos seus planos e sonhos antigos; a atração imensa que o país exercia sobre ele cresceu ainda mais, alimentada pelo “discurso utópico europeu sobre a América e o Brasil”. Já se sentia um Rimbaud dos tempos modernos. Não escrever, não ler – só viver! – proclamava. – Cruzar a linha do equador a bordo de um transatlântico, deixando para trás os mares encapelados, as neblinas pesadas, os frios constantes, os ventos gélidos, tudo isso lhe provocava arrepios de satisfação. 

E assim, aos 37 anos de idade, em 1924, o “pirata do Lago Léman” – como dizia Cocteau – embarcava para o Brasil numa travessia penosa e modorrenta que durou vinte e três longos dias. Navio lerdo e fumacento, vencendo devagar as milhas que o separavam do destino que o poeta ansiava por avistar. Até então, afirmava ele, já havia exercido 36 ofícios diferentes, entre eles uma ponta num filme sobre mortos-vivos, numa cena aterradora, e “estava pronto para qualquer outro amanhã”. Sonhava alto, imaginando fazer cultura, cinema, pesquisas e, de quebra, fortuna no Brasil que “estava cheio de dinheiro”. Naquele “ir e vir sem fim, procurava o lugar e a fórmula”. Quanto a esta, já a dominava; quanto àquele, acreditava estar aqui em nosso país. Tudo isso, 77 anos antes deste livro.

Recebido no porto do Rio pelos modernistas, não teve a mesma sorte em Santos, onde foi barrado em virtude de seu defeito físico e do aspecto deplorável de suas roupas. Humorado, reconhecia que os funcionários estavam certos: “O Brasil precisa de braços e não de aleijados!” – declarou aos amigos constrangidos.

Nada, ou quase nada, se realizou. Os negócios falharam, as pesquisas foram um fracasso e as viagens pelo país não se estenderam como desejaria. Na verdade, não foi além de Minas Gerais. O projeto de um filme sobre o Brasil, que deveria ser 100% brasileiro, também não vingou. Em compensação, a escrita de que tanto desejava se livrar progrediu e vários livros resultaram de suas visitas ao Brasil. Como diz o autor, Cendrars veio poeta e retornou romancista.

Gasto o pouco dinheiro que trouxera, Cendrars viveu dias angustiosos. Esteve prestes a vender até a máquina de escrever. Os modernistas, porém, arranjavam fórmulas de obter recursos para ele: conferências e entrevistas pagas, empréstimos e financiamentos (a fundo perdido?) e, com certeza, doações. Também pedia adiantamentos a editores franceses por conta de livros que escreveria, alguns deles jamais escritos. E assim, sentindo-se um miserável, um “duro” em meio aos ricaços, foi vivendo. Morou por vários meses no Copacabana Palace, no apartamento 101, que não existe mais, apaixonando-se pelo carnaval carioca que nunca saiu de sua lembrança. Em São Paulo, que chamava de Saint-Paul, apaixonou-se pela megalópole, andou por ceca e meca, vasculhou tudo, centro, bairros, periferia, olhando, observando, apalpando, cheirando. Estreitou as ligações com Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, com D. Olívia Guedes Penteado, com Paulo Prado, que teria custeado sua vinda, e a esposa Marinette. O casal lhe emprestou um Ford e nele Cendrars palmilhou ruas e estradas, dirigindo com seu braço único, fazendo pose e posando para fotos. Para completar, presenciou cenas chocantes da Revolução de 1924, chefiada pelo general Isidoro Dias Lopes, e contemplou, desolado, a destruição em Saint-Paul. Com Paulo Prado e a esposa, refugiou-se na fazenda. Esgotadas as andanças pelo Rio e São Paulo, tratou de se embrenhar pelo interior. Tudo o deslumbrava e as exclamações superlativas se sucediam: “Maravilha! Lindo! Extraordinário!”

No interior paulista, contemplou extasiado o mar de café com as intermináveis fileiras que desciam e subiam, onde alguém que se perdesse não conseguiria escapar. Ficou fascinado pelo ouro verde que brotava do solo com tão absurda abundância. Hospedou-se na Fazenda Morro Azul, em Limeira, e jamais esqueceria da casa senhorial, das palmeiras esguias, da obscura e misteriosa floresta vizinha, dos pássaros coloridos e cantantes, do céu pintalgado de estrelas. Lembranças que aparecerão em seus livros de onde “é a vida mesma que corre e escorre... Como mel, do bom mel” – como afirma o autor (pág. 200).

Acontece, em seguida, a excursão a Minas Gerais com os modernistas, o ponto mais alto da viagem. “Faziam parte da comitiva – informa Larivière – Tarsila, Oswald e seu filho Nonê, Mário de Andrade, Olívia Guedes Penteado (“Nossa Senhora do Brasil”), e ainda Gofredo da Silva Telles, seu genro (a quem devo algumas fotos da época do périplo), assim como René Thiollier, que Cendrars conhecera em Paris e que gostava de apelar para suas origens francesas (para agradar mais ao poeta?), todos faziam parte do grupo, todos preparados para longas jornadas de trem pelo interior do país até o coração das Minas Gerais...” (págs. 144/145). Longas paradas, horas e horas sentados, conexões complicadas, pó, calor, cansaço, sujeira, vencendo um trajeto repleto de curvas e cotovelos. Mas Cendrars tudo observava, exaltando a beleza, o verde, o relevo, as matas, o céu azul, como se abrisse os olhos dos brasileiros para seu próprio país. Ensinava brasilidade aos brasileiros, inclusive a (re)descoberta  do barroco e do Aleijadinho, sobre quem planejou um livro que também gorou. Mário de Andrade, interessado, trocava idéias e participava; Oswald, meio doente e emburrado, permanecia quieto em seu canto; Tarsila tudo registrava em seus blocos no seu estilo primitivista e puro.

Em São João Del-Rey se hospedaram num hotel que não existe mais e que o autor procurou em vão. Tiradentes foi o deslumbramento. Imaginaram, na ocasião, criar uma associação pioneira para a preservação do patrimônio artístico e até os estatutos foram escritos mas a idéia não vingou. Tarsila até se comprometeu a aprender a arte da restauração. Entre notas e mais notas, o poeta recolheu tudo que pôde sobre Antônio Francisco Lisboa. Cada igreja, cada casarão, cada rua, cada escultura merece atenta observação e agudo comentário. Parecia beber o que via, degustando até o último gole. E as andanças os levam a Barbacena, Sabará, Mariana, Congonhas do Campo, deixando marcas, lembranças profundas que vão ressurgir com toda força em livros que hoje seriam considerados de autoficção. Foi com sincera dor de coração que se despediu.

Visitou depois Lagoa Santa, nas proximidades de Belo Horizonte, onde fizera contato com os modernistas locais. Na cidade do Dr. Lund teria recebido uma área de terras – as terras de Cendrars. Como tudo, ou quase tudo, tais terras não foram localizadas por mais que o autor as procurasse, rebuscando em repartições e cartórios. Mais um sonho do poeta que não se realizou ou as terras seriam imaginárias? Mistério que Larivière não conseguiu desvendar.

Três foram as viagens de Blaise Cendrars ao Brasil. A primeira foi em 1924, quando permaneceu sete meses e meio mas exagerava para nove; a segunda foi em 1926, tendo permanecido por seis meses, e a terceira em 1927/1928, estendendo-se de agosto a janeiro. Foram menos de dois anos vividos no Brasil, mas as lembranças perduraram por mais de meio século, de tal forma que nosso país se agregou de maneira definitiva ao universo do poeta. “Acontece que o esquecimento se revela impraticável – escreveria ele – porque as lembranças são muito ricas, muito fortes, ou traumáticas...” (pág. 201).

Retornando à França, escreve e escreve, como que impulsionado pelo “milagre brasileiro”. Consegue vencer o “sofrimento de escrever” e em quarenta e cinco dias termina um livro gestado há quinze anos. Obtém imenso sucesso. “O Ouro” recebe elogios da crítica, chegam cartas de leitores, convites para entrevistas e bastante dinheiro. Melhora de vida, é visto em lugares “chiques”, bem vestido e elegante. Publica um ensaio sobre Lampião, figura de bandido exótico que o fascinava. E vão aumentando seus livros sobre o Brasil: “Feuilles de Route”, “Sud Américaines”, “Aujourd’hui”, “La vie dangereuse”, “L’homme fondroyé”, “Bourlinguer”, “Le lotissement du ciel”, “Brésil, des hommes sont venus”, “Trop c’est trop” e “Blaise Cendrars vous parle”, reunindo as longas entrevistas concedidas a Michel Manoll. Traduz para o francês o livro “A Selva”, de Ferreira de Castro, sob o título de “Forêt vierge”. Em conversas ou escritos, nosso país esteve sempre com ele, divulgando, enaltecendo, ensinando. “Ninguém conhece um país assim!” – proclamava enfático. Foi incansável divulgador de Tarsila do Amaral, do Aleijadinho e dos autores brasileiros na Europa. Tornou-se admirador sincero e bom conhecedor das obras de Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda e outros que tentaram uma interpretação do país. Admirava o povo brasileiro e vaticinava grande futuro para ele, ainda que com todos os obstáculos apontados por Paulo Prado. Sem falar na influência exercida sobre os brasileiros nas obras produzidas após suas visitas. Amou o Brasil como poucos.

Muitas obras sobre ele surgiram, tanto de autores brasileiros como estrangeiros, aqui no Brasil. Aracy Amaral, Alexandre Eulálio, Maria Teresa de Freitas, Claude Leroy, Flückiger, Adrien Roig escreveram ou organizaram obras sobre o poeta e suas ligações brasileiras, sem falar em reportagens, crônicas, artigos, entrevistas e matérias jornalísticas variadas. Existe sobre ele, no exterior, copiosa bibliografia e suas Obras Completas foram publicadas pela Editora Denoël. Em meu livro “As antecipações de Lobato” abordei as visitas e influências de Cendrars em um dos ensaios.

Todos esses caminhos, passo a passo, com infinita paciência e com olhos de ver foram refeitos por Larivière neste livro admirável e que merece detida atenção.
      
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