(Quadro de Eliseu Visconti)
Tenho andado preguiçoso
de ler novos poetas, contistas, romancistas, ensaístas. Muitas vezes, sinto
certa angústia: estaria a perder tempo? Tenho mais vivido ao lado dos antigos e
dos velhos. Para vocês terem ideia desses mergulhos (quase todos, mais de uma
vez), menciono cinco obras: Rimas de
José Albano; O muro, contos de
Jean-Paul Sartre; Angústia, de
Graciliano Ramos; Os melhores contos de
Tchékhov; e O grande pânico, de
Airton Monte. Ora, dirão, este último é novo, é de agora (sim, é mais novo do
que eu), embora já não esteja conosco. Está, sim, aqui, ali, acolá, mesmo
invisível, ao lado de José Albano, Graciliano, Sartre e Tchékhov. E de todos os
bons artesãos da palavra.
Pois me achava a matutar sobre isso, olhos abertos ou fechados (não consigo mais imaginar o meu estado), quando chegou a sempre viva e animada Valquíria Monterosso. Caminhamos até a sala: “Menina, você nem me telefonou. Não a esperava”. E experimentei abraçá-la, à força. Não consegui: ela caiu no sofá, suada e cansada. “Água, seu Nilto, água, que tenho sede”. Corri (por pouco não me esborrachei no chão), na direção da geladeira. Divertia-se Alice no quintal, atrás de coelhos e tocas. A visita riu. Não sei se da brincadeira com Alice ou do meu estabanamento. Se por este último motivo, quiçá me quisesse ver morto ou em agonia final. E, no papel de testemunha ocular, teria a contar às amigas, ao futuro marido, aos amantes vindouros, aos filhos e netos (talvez em memórias), os momentos finais de certo escritorzinho de subúrbio obcecado pela beleza da palavra, da frase e da mulher. Coração aos pulos, ofereci-lhe o copo (teria trazido cicuta, fosse noite alta ou sonhasse com traição) e me deitei ao seu lado. “Você leu os três alfarrábios?” Referia-me a Os abismos do ser, de José Mário da Silva; Versos versáteis, de Leo Barbosa; e Quase diário (de coisas pequenas) – IV, de Dias da Silva. Após uma semana com eles, emprestei-os a ela: “Serão analisados na sua próxima vinda a esta caverna” – e me entreguei a imitar troglodita. Valquíria gargalhou, feito criança. Parasse com aquelas macaquices. Então me diga se gostou do primeiro tomo.
Valquíria agarrou a
brochura de José Mário da Silva. Havia posto os três volumes sobre a mesinha de
centro, ao lado de Airton Monte. Leu, em voz alta: “Marco Lucchesi retorna à
cena lírica da Literatura Brasileira com mais um livro, Sphera (Record, RJ, 2003), que realça e ratifica a sua condição de
requintado artesão de um verso que, com rara mestria, combina solenidade
transcendente com a luminosa clareza de uma expressão inteiramente depurada das
retóricas puramente epidérmicas, e, por isso mesmo, inconsistentes, porque
desprovidas do gesto humano essencial inerente às arquiteturas linguísticas que
se pretendem elevadas à superior categoria da arte”. E suspirou: “Por pouco não
perdi o fôlego”. Saí em defesa do modo de compor do mestre (em Teoria da
Literatura) e crítico literário radicado em Campina Grande, Paraíba: “Não vejo
defeito nisso, minha querida. Milhares de moços (e anciões também) escrevinham
poema, conto, romance, ensaio, como se redigisse notícia, naquele estilo
picotado dos jornalistas. Dos bons jornalistas. Outros, à maneira de Mário,
nesse estilo espichado, comprido, esparramado”.
Sem querer desdenhar a
opinião de minha aluna, ressalto em José Mário, pelo menos, uma virtude. Ele
não se apega apenas aos nomes consagrados, os chamados “escritores canônicos”.
Vai de Marco Lucchesi (poeta, ensaísta e tradutor premiadíssimo e membro da
Academia Brasileira de Letras) ao sempre “marginal” e “revolucionário” Gabriel
Nascente. Vai de autores consagrados (João Cabral, Jorge Amado, Marques Rebelo,
Rubem Fonseca e Ledo Ivo, a quem dedica um dos mais encorpados estudos) a
poetas, contistas e romancistas principiantes ou ainda sem nome inscrito no
panteão – Ó palavra gasta! – das letras nacionais, a exemplo de André de Sena
(jovem paraibano) e outros “ilustres desconhecidos” do leitor de livraria, de
acadêmicos e críticos. Esse modo de proceder tem méritos, embora se possam
contar nos dedos os leitores de seu inventário. Tiragem reduzida, falta de
divulgação, inexistência de bibliotecas públicas, além do mais grave: Quase
ninguém desenvolve o hábito de ler.
Mais meia hora de Os abismos do ser e convidei a estudante
para merendar. Chamei a secretária geral e, às claras, fiz-lhe a pergunta por
ela esperada (combinamos e ensaiamos todas as cenas): “Alice, podemos nos
dirigir ao banquete da tarde?” E lá fomos nós, eu e Valquíria, montados no
alazão da fome, no rumo das tortas, frapês e néctares de sabores dionisíacos.
Fartamo-nos (e quase enfartei) e nos devolvemos à sala: “Agora é a vez de Versos versáteis”.
A moça pegou o opúsculo
de Leo Barbosa e o desfolhou, com calma: Não enxergava na sua poesia “centelhas
de gênio” (deve ter anotado isso à margem da folha); pelo contrário, uma cadeia
de mesmices, além de busca precipitada do inusitado. Fez menção a algumas
composições: “Amarras que brotam / sob a rota remota / remontam-se garras / servidas
à ceifa” (“Fazendeiro”). Excesso de rimas, todas forçadas. Além disso, a
linguagem empolada conduz o leitor para sendas perigosas, armadilhas mortais. Tentei
sair em defesa do vate: Só em escrever, já alcançou vitória. Não tem o talento
de um Augusto dos Anjos, (para citar outro poeta paraibano), e a ele não pode
ser comparado. Entretanto, segue pela senda (para imitar o estilo do próprio
Leo) que poderá levá-lo ao halo da mais pura poesia. Ela sorriu: “Assim é
demais, seu Nilto. Não exagere e não brinque com coisa séria”. O crítico Carlos
Aranha, na crônica-prefácio, sintetiza, assim, a sua opinião a respeito das
estrofes de Leo: “Em ornitologia, definem-se como versáteis os dedos das aves
que se dirigem para trás e para frente. As linhas poéticas de Leo Barbosa não
têm o que está à frente nem atrás. Eles desenvolvem-se em círculos e fora de
qualquer círculo”.
Relemos, em voz alta,
outros cantos do estudante de Letras (tem a vida inteira para ler, imitar,
exercitar-se, aprender) e caímos em estupor de adolescentes após o coito
prolongado. “Agora desejo dormir e sonhar com você”. Envolta em riso, estirou-se
no sofá. “Eu quero mais poesia”. Olhei para meus pés: “Não tem mais poesia,
menina. Agora nos resta diário de escritor de província”. E me pus a folhear a
coletânea de Dias da Silva. “De quem se trata, professor?” Nem olhei para ela:
“Dias da Silva é escritor full time.
Vive para lapidar frases, embora tenha editado apenas 27 títulos”. Para
Valquíria, número excessivo. Observei a importância de compêndios daquele
feitio: Anota, no seu cotidiano de estudos intermináveis, toda a beleza captada
(essência) nos escritos. Disseram, amigos dele, tratar-se de um dos mais
devotados leitores brasileiros dos nossos tempos. Dias da Silva não se diz
crítico literário; apenas comentarista.
Toda a sua criação literária ele a divulga em jornalzinho de sua
“propriedade”. A ninfeta pediu perdão pelo pecado cometido: Não tinha lido
“direito” o impresso dele. “Era noite alta e tive sono. De manhã, ao acordar, o
objeto repousava debaixo de minhas pernas”.
Ainda dediquei uns
minutinhos a Airton Monte. Apresentei O
grande pânico (edição da Moderna, de São Paulo, 1979). “Um dos melhores
contistas brasileiros surgidos nos anos 1970 – impedido, por doença terrível,
de continuar a engendrar crônicas diárias (quantos contos ainda viriam, quantos
romances, quantos poemas?)”. Valquíria não o conhecia. Tinha interesse em ler
aquela obra rara? “Sim, tenho”. “Pois leve, porém não durma com ela debaixo das
pernas”.
Fortaleza, 14/17 de
agosto de 2013.
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