(Desenho de Eduardo Schloesser: Dom Camurro)
Conheci
mais um doido. O nome dele é Cleto Milano. Chegou à minha vida pela mão das
novas tecnologias. Nunca me vira nem ouvira ou lera meu nome, em qualquer
lugar. Por acaso, aproximou-se do meu blog. E me mandou breve mensagem: “Sou
escrevinhante de resenhas e gostaria de ganhar um de seus romances ou conjuntos
de conto. Moro no Benfica, desde 1973”. Tomei susto medonho. Teriam as meninas
me abandonado ou cedido lugar a velhotes? Sim, tenho me correspondido sempre
com jovens, quase todos do sexo feminino. Deixei de lado o preconceito (também
sou velho e não devo temer a aproximação de meus semelhantes). Não perdi tempo:
“Expedirei, pelo correio, exemplar de Luz
vermelha que se azula. Não precisa compor resenha. Basta meter a vista nos
contos”.
Na comunicação
seguinte, deu maiores referências de sua morada: “Escondo-me numa casa ampla.
Não perto demais do Estádio Presidente Vargas nem suficientemente longe da
Reitoria”.
A
segunda carta veio recheada de informações: “Sou aposentado e desde jovem me
viciei em letras. Mergulhei em quase todos os clássicos portugueses e
brasileiros, sem esquecer outros estrangeiros”. Enviei os contos e aguardei
pronunciamento de Cleto. E sabem qual o assunto da nova manifestação? Guardava
diversos artigos, por ele elaborados ao longo dos anos. Um tratava de Dom Casmurro. Teria alguma novidade? As cidades e as serras inspiraram “estudo
apurado, de vinte e tantas folhas”. Seria mesmo apurado? E mencionava diversos
autores e obras canônicas. Nunca sequer aludira a existência dos manuscritos
a alguém. Se eu poderia dar uma “opinião sincera”.
Perdi um
dia a arquitetar justificativa da decisão de me manter longe de mais um
aborrecimento. Ora, não estou para soletrar inutilidades, futilidades, infantilidades.
Pensei numas grosserias: “Por favor, não me dadive nada. Continue dedicado aos
clássicos. Infelizmente não disponho de tempo para examinar todos os escritos
recebidos”. Mostrei-me sensato e apaguei da memória estas palavras e
subitamente me transformei em sujeito cortês ou gentil: “Terei prazer (tenho
certeza disso) de me afundar em seus ensaios. Prometo leitura demorada e atenta”.
Enquanto
rasgava invólucros de embrulhos e folheava seus conteúdos, pensei: Melhor
passar a vista pelos artigos de Cleto do que perder tempo com certos livrecos.
Pois ele me dissera: “O senhor não acreditará nesta minha confissão: Sou
‘escritor’ inédito. Ou seja, um escrevinhador”. Ainda bem. Até pensei em me
ajoelhar diante da primeira imagem e agradecer a Deus por aquele instante sem
tortura. Assim, não teria o dever de manusear mais um amontoado de sandices e
malfeitorias impressas.
Pois o
desgraçado tem estilo, sim, senhor! Explorei cerca de dez artigos dele e não me
aborreci nem me zanguei e “quando eu me zango, Marina, não sei perdoar”. Pelo
contrário, ocorreu-me dar uns gritos de alegria. Um gato caminhava pelo dorso
do muro. Assustou-se e, por pouco, não se despedaçou no meu terreno. Pedi-lhe
desculpas e o chamei de “meu bichano”.
Conto
essa história, com certo atraso. Há quase um ano chegou o primeiro recado de
Cleto. E já não o vejo como doido. É sujeito parecido comigo. Muito parecido
mesmo. Só difiro dele no essencial: sou cordato e ele grosseiro, não gosto de
falar mal de ninguém e ele é dono de língua extremamente ferina, adoro
clássicos, sem ficar cego aos novos, enquanto ele só conhece os antigos. Como
eu, Cleto ganha presentes de editoras e redatores de versos e prosas. Isso acontece,
porém, de uns meses até esta data. Antes, como ninguém sabia de sua existência,
só folheava impressos comprados em livraria ou solicitados por correio.
Somos semelhantes
também no modo de viver. Ambos reclusos. Com ele habita uma “secretária”, de
nome Alice. E eu já tive uma empregada com esse nome. Seria a mesma pessoa? Contive
a curiosidade. Não precisava descobrir a identidade da moça. Numa das
mensagens, chamou-a de “jovem” e confessou: “Apresento-a, aos meus visitantes,
como doméstica, embora exerça outras funções na casa”. Entendi a frase como uma
confissão. Sou malicioso feito macaco. Se eu não estiver enganado, Alice é sua
mulher ou amante.
Logo
nas primeiras mensagens, revelou: “Não tenho lido quase nada. A não ser um ou
outro clássico. Casualmente compro novidades (para mim). Pais e filhos, de Ivan Turgueniev, é uma
delas. Também faço releituras. Dom
Casmurro reli e desejo a ele voltar”. Nesse aspecto biográfico, parece
menos pobre do que eu, pois nem aos clássicos tenho me dedicado. Aqui e ali,
releio Machado, Eça, Pessoa, Kafka, Graciliano e uns poucos eleitos.
Convidou-me
a ir à sua casa. Aceitei, se também viesse me conhecer. E assim aconteceu. Dirigi-me
ao Benfica, ele veio ao Monte Castelo. Dei-lhe de presente Viagens na minha terra, de Almeida Garret. Tive pena dele. De sua
velhice, aquelas rugas entrelaçadas, aquelas costas encurvadas, aqueles olhos
mortiços. Imaginava-o mais viril ou menos próximo da senilidade. Brinquei com
estas palavras. Sem constrangimento, ele retribuiu a descrição. E rimos de
nossa miséria. No meio da conversa, ofereci-lhe água ou suco. Preferiu água. Eu
mesmo corri até a cozinha. “Você mora só?” Dei-lhe esta resposta: “De vez em
quando, prefiro estar só. As más companhias me têm feito um mal danado”.
Já
quase na hora de se retirar (solicitou táxi por telefone), fez um pedido,
seguido de extraordinária confissão: “Se você puder me emprestar algumas
publicações novas...” Sorri. “Não sei qual a serventia de livros novos, se você
só lê os antigos”. Justificou-se: pretendia instalar uma oficina de criação
literária. Estarreci-me: “Como se dará isso, seu Cleto Milano, se você não tem
experiência com criação literária?” Ele torceu o beiço: “Para ensinar a forjicar
frases o professor não precisa saber usar a bigorna da língua. Bastam alguma
leitura, perspicácia e conhecimento”. Eu não quis discutir o assunto. Afinal,
ele iria embora logo. “Sabe qual o meu propósito?” Fiz sinal de ignorância com
o lábio inferior. Ele se apressou em esclarecer: “Promover a leitura dos novos,
por minhas alunas. E o hábito ou a técnica de comentar textos. Assim, matamos
dois coelhos com uma cajadada: elas aprendem literatura e me ajudam a redigir
resenhas”. E confessou: “Criarei um blog literário. Postarei nele meus
comentários antigos e os novos. E, assim, me tornarei conhecido de editores e autores.
Conhecido, receberei, todo dia, brochuras, compêndios, tomos, coleções... Tudo
de graça, meu caro”.
Eu me
sentia em estado de choque. Nunca ouvira proposta ou confissão daquele teor. Pareceu-me
inescrupuloso demais o senhor Cleto. Pois eu estaria metido até o pescoço
naquele imbróglio. E, enquanto o taxista buzinava lá fora, ouvi isto: “Meu
único intuito é ‘conhecer’ mocinhas interessadas em literatura. Nada cobrarei. Tudo
de graça ou com graça. Aliás, só quero delas a graça de sua juventude”. Abri o
portão e ele se meteu no carro: “É tudo por divertimento, seu Nilto. Algo como
terapia, passatempo...”. O carro se pôs em movimento e ainda ouvi: “hobby”.
Fortaleza,
20/22 de setembro de 2013.
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