(Escritor Carlos Trigueiro)
Nos confins
paraibanos, rumos de Coitezeiras, Francisco, meu avô paterno, músico, encantou
um bilhete no sopro do clarinete. A
mensagem soprada varreu léguas, marcos, fronteiras e chegou a Parnamirim, terra
potiguar, onde vivia Maroca, minha futura avó. Maroca, com os olhos da cor do céu,
desencantou o bilhete musicado e não parou de cismar. A réplica levou a
eternidade de três luas no lombo de jegue amuado e montado por um abestado.
Depois de ler o bilhete de Maroca, Francisco botou o clarinete no ombro e o
berro no cinturão. Juntou seus teréns numa trouxa e cavalgou as léguas da
precisão. Até hoje ninguém sabe se Francisco pediu a mão de Maroca ou se Maroca
o agarrou pela mão. Sabido e comprovado é que, chegando ao litoral, arranjaram
bilhetes num veleiro e arribaram pro Norte da promissão.
Meu pai,
músico, de nome grego impronunciável, mais conhecido por Teté, mandou um
bilhete encantado pra Ceci, minha mãe, no outro lado da rua poeirenta, em
Manaus, quando a segunda grande guerra ensaiava pra começar. Desencantado o
bilhete, marcaram encontro com hora e lugar musicados: em frente ao coreto da
praça, assim que a banda parasse de tocar. Juntaram vidas, destinos, quatro
filhos, redes, trapos, trecos, teréns, flauta, flautim, sax, clarinete,
compraram bilhetes do Almirante Alexandrino, navio do Lóide a vapor, e arribaram
pro Ceará.
Na praia de
Iracema, minha mãe fez um bilhete pra professora dizendo que naquela semana eu
não iria ao grupo escolar. E um bilhete explicou: “com catapora da braba, é
melhor o menino sossegar”. Depois do resguardo, já sarado, danei a escrever
versos de pés quebrados, e mandei bilhetes pra dezenove meninas das redondezas,
cada uma mais linda que a outra, e sonhei o dobro das que contei nos bilhetes:
pois já eram trinta e oito as que se embeiçaram pra me namorar. Em Fortaleza,
vi o primeiro bilhete de trem, mas meu pai não me deixou na maria-fumaça
embarcar. Só me permitiu um bilhete pra olhar o trem de perto, pois era uma
peça de museu, pros lados da Praça José de Alencar.
Ainda no
Ceará, meu pai comprou um bilhete de loteria e sonhou que estava rico. Mas o
prêmio foi de poucos mil-réis, já que o número sorteado era só uma aproximação.
E de uma coisa não me esqueço dos meus tempos de moleque: um primo de criação
achou um bilhete de rifa no chão. No sorteio, durante a fogueira de São João, ganhou
um patinete, um saco de mariolas, um pião e uma molecada correndo atrás dele:
“Pega ladrão!”.
Naquelas
alturas da vida, fiquei sabendo que bilhete servia pra muitas coisas. Minha mãe
contou que o marido da vizinha recebeu o bilhete azul e a família estava
passando necessidade. A mãe, sem nenhum rococó, fez um ensopado de peixes –
biquaras e ariacós – com muito arroz e pirão. Em seguida, escreveu um bilhete e
me chamou no beiral da porta: “menino leva essa panela pra vizinha, mas não se
esqueça de entregar o bilhete que boto na tua mão.”
Então era
isso: bilhete servia mesmo para muitas coisas da vida e até da morte. Aliás, a
primeira pessoa morta, mortinha, que eu vi de perto, roxinha feito azeitona,
foi Maristela. Diziam que tinha quinze, dezesseis anos. O namorado abandonou a
bichinha que apaixonada e buchuda tomou meio litro de cajuína com formicida e
estrebuchou na calçada. Deixou dois bilhetes enfiados no fecho das alpercatas.
Na alpercata do pé direito, fez um bilhete pra família pedindo perdão. Na
alpercata do pé esquerdo um bilhete pro namorado pregando maldição. Naquele dia
aprendi que bilhetes também serviam pra todo tipo de provação: um cabra podia
ficar viúvo e não ter casado não.
Fiz uma
arraia colorida e arretada, soltei a linha da maçaroca e botei a danada no ar. Na ponta da rabiola, botei um bilhete
de tal jeito que, embioca daqui, embioca dali, o bilhete caiu no quintal da
Mariazinha, moça feita, que eu sonhava namorar. Ao ler o bilhete amoroso,
Mariazinha fez uma figa, subiu na cerca do quintal, me acenou uma banana com o
antebraço, me mandou praquele lugar passando as mãos no avental.
Quando
cresci, ganhei e rodei o mundo, vi bilhetes em trens, barcos, barcaças, navios,
aviões, circos, cinemas, museus, boates, teatros, bondes, ônibus,
rodas-gigantes, montanhas-russas, carrosséis. Bilhete em tudo quanto era
idioma: billiet, biglietto,
billete, ticket e noutras
línguas em que bilhete é baita palavrão. Moral da história: mundo rodado, tempo
passado. Enquanto isso, os bilhetes a mão foram findando, findando, findando.
Agora é tudo bilhete eletrônico, a tal mensagem digitada que apelidaram de
torpedo, emeio, ou frase tuitada, e que acende e apaga numas telinhas
brilhantes de nomes estranhos, “esmartefone, celular, tablete” que parecem
coisas de satanás, pois levam os bilhetes a toda parte e a qualquer hora sem
precisar sair do lugar seja pra frente seja pra trás.
Enfim, hoje
as tecnologias impõem os fazeres das pessoas e do mundo. E mostram que o tempo
dos bilhetes de verdade acabou. Pensava assim, até reencontrar um parceiro de
conversa vai conversa vem, dos tempos de O saco literário:
o cearense Nilto Maciel palestrando na Academia Brasileira de Letras em pleno
Rio de Janeiro. Entre falas e abraços, com saudades de outros tempos, fiquei
encucado com o que ele me falou em fluente convicção. Por incrível que pareça,
o Maciel me disse que ainda acreditava e acredita em bilhetes, isso mesmo, e em
bilhetes literários, talvez até feitos a mão, e me pediu esse arremedo de
escrito, escritura, escrituração, pois, rasgos de literatura... não sei, não.
Então, pra escrever um bilhete com trejeitos de outras eras me disse ainda: “Trigueiro,
me sopra um bilhete fagueiro que eu solto o bicho no espaço Literatura sem
Fronteiras.“
Diante da
ideia do cabra pai d’égua, fiquei a cismar do mesmo jeito que os meus avós lá
se vão cento e tantos anos. Concluí: no Ceará dos meus tempos, nas dunas que o
vento soprava pelas bandas do Mucuripe, a linha que a vista alcançava separando
o céu do mar não passava de pura visagem. Porém, anteontem despertei assustado.
Tive um sonho danado. Mas me dei conta de que estava acordado e lembrei bem
lembrado que a linha no horizonte onde as jangadas se perdiam existia mesmo,
não era visagem, nem quimera, nem utopia, nem surto ou imaginação. Por isso
tenho certeza de que esses bilhetes que fiz agora e aí acima arremedados só
vieram à memória porque os escrevi imune a cercas, cercados, marcos, sertões,
cacimbas, açudes, brejos, olhos d’água, riachos, igarapés, rios, mares,
montanhas, nuvens, secas, desertos, florestas, neve, gelo, degelo, tufões,
tempestades, tornados, fases da lua, estações, meridianos, fronteiras. Porque
os escrevi com o pedaço cearense da minha alma, ou seja: em permanente
arribação.
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