"(...) mostrei-lhe os pavimentos de minha casa, as estantes dos
papiros, as obras raras" (...)
Apresentou-se
(no e-mail) como Juliana Venturoso de Azevedo Moura, leitora de Mia Couto,
Agualusa, Ondjaki. Sonhava com me conhecer pessoalmente. Enchi-me de emoção e
logo me rendi: “Sim, pode ser agora, venha, corra”. Meu nome surgira num bar.
Tive inveja dos rapazes que frequentam bares todas as noites e morrem de câncer
e angústia. Se tivessem intenção de me pegar em emboscada, visitassem os bares
do Benfica. Cercado de mocinhas, antigo cidadão sussurrava frases novas ao
ouvido da mais fresca, enquanto a cerveja esquentava no copo.
No dia
seguinte, veio à minha casa. Andava com exemplar de Os da minha rua. Insisti na história do bar. E contou detalhes: Encontravam-se
ela, amigas e amigos da faculdade num bar. E a conversa descambou na direção de
livros, literatura, escritores. Quem merecia leitura no Brasil? “Amiga minha
citou o seu nome”. Quem terá sido essa traidora? “Ruana”. Fiz-me de
desentendido, bobo ou imune à fama: “Não me lembro dela”. Juliana engoliu meu
fingimento: “Veio aqui mais de uma vez. Ruana Cardoso. Ou não recorda?”
A lengalenga
teve bom andamento, mostrei-lhe os pavimentos de minha casa, as estantes dos
papiros, as obras raras. Tocou em Aziyadé.
“Quem é Pierre Loti?” Ao final, emprestei-lhe três impressos recebidos
recentemente. Lembrança de homens que não
existiam (Fortaleza: ARC Edições, 2013), de Floriano Martins e Valdir
Rocha; Falsa paisagem (Guaratinguetá:
Penalux, 2013), de Paulo Lima; e Rumo
norte (Fortaleza: Local foto, 2009), de Natercia Rocha. Lesse e voltasse.
Juliana saiu com seu Ondjaki.
Passados sete dias, ela voltou. E me pegou agarrado a’O crime do padre Amaro. Confessou ainda não ter lido nada de Eça. E
eu lhe puxei a orelha: “Pois antes de conhecer escritores do nosso tempo, é seu
dever mergulhar em Eça e demais maestros da sinfônica literária. O mal de
muitos escritores novos é começarem por eles mesmos e terminarem também neles”.
Passado
o momento de professor ranheta, deixei o Eça de lado e agarrei o cearense
Floriano. “Você gostou de Lembrança de
homens que não existiam e dos desenhos de Valdir? Você deve ter percebido:
não se tratam de meras ilustrações. Os desenhos e os poemas podem ter nascido
juntos ou um após o outro, como em composição de música popular. Trata-se ‘de
diálogo criativo que transcende os limites da ilustração’. Isto é, o desenho completa
o bordado verbal e vice-versa, embora possam ser ‘vistos’ separadamente”. A aluna
sorriu: Os desenhos lhe pareceram primários. Atalhei: Não seriam primitivos? Ou
seria ela a primária?
Ao
analisar os desenhos, Floriano observa: “as
máscaras mortuárias anônimas se somam como uma ponte que me levam até os hinos
religiosos encontrados nos túmulos egípcios”. E elaborou os cantos
exatamente diante dessa visão antiga.
Então
sapequei a pergunta presa à garganta: “E o tecido poético propriamente dito?”
Ela se esquivou: Preferia ouvir antes minha opinião. Engendrei retrospecto
sumário da tecelaria poética de Floriano: acompanho a sua trajetória desde os
anos 70 et cetera. Cheguei a redigir artigo a respeito de suas primeiras peças.
Está em Gregotins de desaprendiz. A
leitora de Agualusa se revelou curiosa: “Quero ler”. Fiquei em dúvida: “O dele
ou o meu?” Ela riu.
Voltei
a Floriano: Se pelo vocabulário (substantivos, em especial, ou os nomes das
coisas e dos seres) pudesse o leitor assimilar o bardo por inteiro, poderíamos ver
na arte de Floriano Martins o tempo e o espaço anteriores à escrita: ‘vazio’,
‘noite’, ‘areia’, ‘abismo’, ‘caminho’, ‘espírito’, ‘jornada’, ‘nome’, ‘luz’,
‘vozes’, ‘espécies... Pois com estes vocábulos antigos, conduzidos por verbos,
ele recria o mundo”.
A
visitante me interrompeu: “Não sei, não, seu Nilto; esse tipo de composição,
com versos muito espichados, poderá ser cansativo ao leitor. Além disso, há certo
palavreado obscuro (para o leitor)”. Rebati sua opinião: “Não vejo assim. Tudo
tem explicação em poesia. Exceto quando o versista escrevinha por brincadeira, com
desejo de rir do leitor”. E ela não perdeu o ritmo da toada: “Não será o caso
de Floriano? Veja esta frase: A segunda
noite é um temporal repleto de duplos que embaralham as refeições e desfiguram
os amuletos. Qual o significado de ‘um temporal repleto de duplos’? E de
‘embaralhar as refeições’ e ‘desfigurar os amuletos’”? Saí de novo em defesa de
meu amigo: “Isto é metáfora, minha jovem”.
Passada
meia hora de altercação, mudei o tom da voz e ofereci água, suco ou bebida
alcoólica. Ficou em dúvida entre a primeira e a terceira. Decidiu-se pela
segunda. E passei ao Falsa paisagem.
"A engenharia de Paulo se assemelha a brincadeira, aqui e ali. E isto se dá especialmente
em odes capsulares, à maneira de Nicolas Behr, nos anos 70. Ou Paulo Leminski.
Vejamos este: lesma / tarda / mas chega”.
Juliana demonstrava serenidade: “Seria versejadura circunstancial?” Teimei:
“Talvez não. Seria, quem sabe, a busca do mínimo, do poema adequado a novidades
como facebook, twitter, orkut. O artefato literário dirigido ao leitor
apressado, sempre a correr em busca do essencial no corriqueiro”. Ela me
espicaçou mais uma vez: “Hinista pós-moderno?” Não sei a intenção dela. Quiçá tencionasse
testar meu vocabulário crítico. Redargui à provocação, sem azedume: “Nem tanto.
O vate tem cabedal, como em “rilkiana”. Isto é, ele vai a Rilke, Marx, Jung,
Freud, Paul Klee. Não é desses doidinhos sempre atrás de rimas primárias”. A
moça afigurou-se provocativa: “Agora é você quem tem jeito de doidinho”. Simulei
surdez: “Em ‘poesia a quilo’ lemos verdadeira lição de arte poética nestes
‘tempos histéricos’ (expressão de André de Leones, nas abas): uma porção / de rima // um tanto / de ritmo
// uma pitada / de estranheza // outra de espanto // um grão / de nonsense //
outra de acidez // humor a gosto // traçar / sem parcimônia // vale / garfo /
faca / mão / colher”. Visse a brincadeira do título: ‘poesia a quilo’. Não
seria também ‘poesia aquilo’?
Propus
nova interrupção do diálogo. Fomos à sala de jantar, a convite de Alice, e nos
lambuzamos de frapê de morango. Juliana acariciou um braço de minha secretária
e lhe dirigiu duas ou três indagações indiscretas. Antes das respostas,
reconduzi a menina, às pressas, à sala de visitas. Precisávamos analisar o
terceiro opúsculo. Deixei por último Rumo
norte. Saí encantado da ‘leitura’ (mergulhei sem medo, despreocupado com o
tempo) do belíssimo artefato – em todos os sentidos – de Natercia Rocha. Não me
refiro às fotografias. Não, que a natureza, o ser humano, os seres em geral e
as coisas do homem são quase todas muito belas: a cachoeira, o horizonte, os
templos, as dunas, as flores, os rostos das crianças, o poente, o arco-íris, as
águas. E Natercia sabe descobri-las. Ou vê-las.
Juliana
se embasbacou com minha improvisação: “Pôxa, você está mesmo inspirado”.
Aproveitei a euforia: “Natercia é poetisa feita não só de fios poéticos, mas de
muita sensibilidade. Basta examinar os poemas (chamados erroneamente de textos,
como se fossem simples descrições ou legendas de fotos). E recrio, calada, / novos perfumes em preto e branco”. A garota
rebateu assim as minhas ponderações: “Em dados momentos, o texto tem semelhança
com narrativa”. Discordei da estudante: “O propósito de Natercia é exatamente
descrever a natureza, de forma poética. A homenagem ao poeta Alcides Pinto é de
inimitável ternura: 'Terno e fálico é
nosso riso no umbral da fantasia'. E o instantâneo de solidão, em ‘E remendo pequenos espaços de mim: /
Retalhados pontos de lembranças / Que o Tempo não desgastou’”. A leitora de
Mia Couto deu malicioso sorrisinho: “Gostou mesmo?” Dei-me aparência carrancuda,
de professor de ética: “Quase delirei”.
Sem
mais nada a conversar (sinto-me cansado, após falar muito), dei por encerrada a
‘aula’. Ela me ofereceu, por empréstimo, o romance Teoria geral do esquecimento, de José Eduardo Agualusa. Recusei.
Tenho dezenas de compêndios à minha espera. E lhe ofereci O crime do padre Amaro. E todos os meus alfarrábios.
Minha
vingança predileta é doar meus sonhos a quem nunca dorme.
Fortaleza,
3/5 de setembro de 2013.
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