(Varal, 2012; óleo sobre tela , de Eduardo Berliner).
Não há esforço interpretativo, se podemos apontá-lo,
ele é inibido pela perigosa cadeia que liga indivíduos que frequentam as mesmas
livrarias, salas de cinema e o mesmo círculo de amigos. E para não ofendê-los
com suas opiniões, se possuem alguma, estes localizam sobre a superfície da
obra aquilo que lhe é menos característico e individual, investindo todo seu
esforço para exaltá-lo como condensador das supostas qualidades do que veem; e
se acompanharmos ponto por ponto o que ali está dito, certificando-nos de
checá-lo minuciosamente, tristemente perceberemos que, em se tratando de
pintura, solicitamos a cegos suas impressões.
Isto, maiormente, se dá na crítica contemporânea e
faz com que alguns nomes alcancem renomada reputação: ou por repetirem os
releases ou trechos de conversa escutados durante o vernissage ou da própria
conversa com o artista; e mesmo por abordarem, ordinariamente, o fenômeno da
pintura com simplificações do tipo “é um particular trabalho em que o olhar
atua...” ou “a narrativa subjacente nos trabalhos impressiona”, tudo do que
prescinde uma boa pintura e que lhe deveria ser usual, é ressaltado como se
somente a sua presença fosse um indicativo da individualidade do pintor e de
seu talento. Quando são apenas atributos dos quais não se pode abrir mão quando
se é um iniciado no universo da pintura em geral.
Esta reflexão deriva da à exposição do pintor
Eduardo Berliner, no CCBB/RJ, aconselhada por uma artista de sensibilidade e
talento, que se esforça, não apenas em exercer a sua arte, confeccioná-la de
melhor modo possível, mas, em questioná-la, averiguá-la. E refletir sobre o
caminho em que ascende para não dar passos em falso ou cair em armadilhas
comuns àqueles que trilham a mesma estrada e se contaminam com o excessivo
individualismo vigente – um individualismo tão nocivo que está fazendo com que
os criadores não se alinhem a tradição e intentem reinventá-la.
E alinhar-se à tradição não quer dizer venerá-la sem
expor-lhe os erros, mas compreendê-la como uma plataforma em que suas
experimentações dialoguem com aquilo que já realizado, acrescentando àquela
velha sensibilidade as novas cores de horizontes diferenciados.
Para reforçar a linha do que digo, assalta-me a
memória um livro pertencente a uma coleção que se debruça sobre poetas
contemporâneos, em especial sobre o ensaio a respeito da obra de Armando
Freitas Filho. E dentro das análises efetuadas sobre o poeta, há um depoimento
que é levado em conta do poeta Sebastião Uchoa Leite, afirmando que a poesia de
seu contemporâneo está calcada sobre o binômio: poesia e vida.
Nessa sentença há esforço interpretativo? Ou apenas
uma afirmação banalíssima, destas com que nos deparamos em coletivos ou em
bares? E não da boca de intelectuais, investidos de aura e de títulos, dos
quais, se não novidades, ansiamos por peculiaridades que se esquivem daquilo
que é matéria comum ao trabalho do artista?
Assim a obra de Eduardo Berliner fez com que minha
memória se recordasse do escritor Milan Kundera e de seus ensaios sobre Francis
Bacon.
Em particular do livro O Encontro. E, afunilando-se
ainda mais minha lembrança, utilizo-me do trecho transcrito:
“E é por isso que a palavra “horror”, que se aplica
obstinadamente à sua pintura, o irrita. Tolstói dizia sobre Leonid Andreiev e
seus romances noirs: “ele quer me assustar, mas não tenho medo”. Existem hoje
muitas pinturas que querem nos assustar, mas nos entediam. O temor não é uma
sensação estética e o horror que encontramos nos romances de Tolstói nunca está
ali para nos assustar; a cena emocionante na qual operam sem anestesia André
Bolkonski, mortalmente ferido, não é desprovida de beleza; como nunca é
desprovida de beleza uma cena de Shakespeare; como jamais é desprovido de
beleza um quadro de Bacon.”
E retomo, para a discussão, a afirmação de Tolstói
sobre Andreiev para especular sobre o universo pictórico de Berliner.
Dito isto, esse passo representa mais do que vi e
constatei daquilo que foi escrito sobre o pintor, porque representa a tentativa
de uma reflexão teórica pretendida como séria, embora não em estrito senso, a
ponto de exibi-la como uma verdade sobre o entrevisto durante a exposição. Ele
quer me assustar, mas não tenho medo, foi exatamente como me senti quando me
deparei com os quadros. E arrisco que há na pintura de Berliner – esta em que
os objetos estão impostos como enigmas ao espectador – algo que me remeteu as
experimentações de Francis Bacon.
Embora nos trabalhos menores – as aquarelas – certo
convencionalismo esteja insinuado e destoe da ambientação criada pelas telas
maiores. E, principalmente, das inquietações transmitidas por elas.
Contudo, se me faço um observador mais exigente,
pelo risco de tê-lo colocado ao lado de Francis Bacon – em minha sensibilidade,
questiono o “eu” travestido em alegórico, sem a coragem deformatória
preexistente no seu coetâneo, misturado aos bombardeamentos televisivos de
tragédias competidores diretas do universo simbólico violento do autor. E
pergunto como pode ele,o artista, transcendê-lo sem o abandono o laivo da
emoção estetizante em algum nível, retirados seus pés da vala comum da notícia
jornalística ou de um surrealismo tardio – sobrevivente às ruínas pós-modernas,
sem apoio algum senão da própria ilogicidade do real?
No entanto, Eduardo Berliner, o pintor, se opõe ao
gosto pelo aleatório. Realmente há no que o artista realiza um gesto
sequencial, um planejamento que o desinstala imediatamente desse jogo. Apesar
de aludir em suas falas sobre seu processo criativo – a desconstrução como meio
para a composição da obra – isto não se transpõe como resultado para a tela.
Este aparte crítico, subtraído da longa conversa com
Martins, especialista em Cultura Contemporânea, é uma contribuição para
descoberta de vínculos que essa pintura possa vir a ter, além dos sinais que já
traz em si mesma.
Eduardo Berliner é talentoso – ouço, enquanto (des)
vario sobre a mulher que detêm em suas mãos uma cobra coral e um lagarto sobre
uma passadeira de roupas, enquanto é observada pelo menino deitado sob esta
última. Resolvemos apelar para os circunstantes. Eles, mais espertos do que
nós, tinham prontas as respostas para o que viam. E sobre esse quadro,
afirmavam é uma alegoria sobre o desejo e sobre aquele outro do homem, com
fantasia de monstro, despenando o que pareciam anjinhos, asseveravam é sobre a
nossa queda. E daí por diante, emendavam considerações umas nas outras. E não
eram desprovidas de interesse sobre o que viam, embora me parecessem acessos
fáceis/frágeis demais. Minha esposa, que divide conosco o prazer da exposição,
aproxima-se e sublinha que talvez nós sejamos os cegos.
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Mariel Reis, ensaísta e escritor, escreve o blog Cativeiro Amoroso e
Doméstico (www.cativeiroamoroedomestico.blogspot.com ). É autor de Vida
Cachorra (contos), Editora Usina de Letras, e A Arte de Afinar o Silêncio
(contos), Editora Ponteio.
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