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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Esse é o Homem, de W. J. Solha (Expedito Ferraz Jr.)




 

Talvez seja um vício do leitor de hoje, mas uma das senhas que frequentemente empregamos na apreciação de textos contemporâneos consiste em responder à pergunta “com quem esse autor dialoga?”, que deve corresponder, aproximadamente, a “em que escala devo calibrar minhas expectativas em relação a esse texto?”, ou ainda “qual o repertório do leitor ideal a que ele se dirige?” Há casos, porém, em que esse ponto de partida não nos levará muito longe, simplesmente porque algumas obras se põem em diálogo com toda a série histórico-cultural que as precede. Acredito ter encontrado um exemplo recente disso em Esse é o Homem: Tractatus poetico-philosphicus, de W. J. Solha (Ideia, 2013).

Trata-se de um texto ousado, tanto pela mistura de gêneros que propõe quanto pela grandeza do tema que desenvolve em sua malha enciclopédica de referências. “É da Humanidade que — principalmente — agora falo”, diz o autor, na orelha do livro. Já não seria pouco. Entretanto, penso que a essência lógico-discursiva do poema seja antes a afirmação do sagrado como criação humana, representado no mesmo plano (e sujeito às mesmas tensões e contradições) que as demais construções da arte e do imaginário. O que não impede que a essa proposição se intercale um vasto painel, sincrético e sincrônico, da aventura humana, que tem origem com a palavra (ou na palavra) e vai desta ao mito, à poesia e a outras formas artísticas, numa estimulante anarquia cronológica, de gêneros e de estilos, em que se fundem o passado ao presente, o erudito ao popular, o monumental ao prosaico. Se não é esta, evidentemente, a única via de leitura que a obra nos propõe, parece-me ser a que a considera em sua maior abrangência — certamente mais fecunda do que a monológica decifração de qualquer intuito específico e datado de sátira.

Esse é o Homem
 é matéria épica diluída em tom satírico. É vocação metafísica dissipada no humor da linguagem. É eloquência retórica atenuada no recurso ao chiste, ao jogo verbal, ao passeio por entre signos da cultura de massa. Mas o mérito do poema, a meu ver, não está nessas difíceis combinações: sua eficácia se deve, principalmente, à rigorosa coerência construída entre o que o texto diz e como ele diz. Falo dos nexos que se estabelecem entre o nível temático da obra e o de sua construção, ambos orientados para um mesmo efeito, que, em sentido amplo, poderíamos chamar de profanação — o movimento de trazer o seu objeto para fora do templo, isto é, para fora dos limites do sagrado. Movimento que, nesse caso, não se realiza apenas na esfera do sagrado místico-religioso, mas se estende igualmente a formas rituais da cultura, do pensamento, da linguagem, já que, isomórficas àquela primeira, há ali pelo menos outras três espécies de profanação: a do conceito tradicional de História, a das estratificações impostas aos fenômenos artísticos-culturais e a da articulação lógica do discurso.

Na representação que faz da História, a sequência cronológica e sua tradicional concepção linear dão lugar a outro critério, que é o da analogia. Quer seja por semelhança de forma ou de essência, os signos se reeditam ao longo do tempo (e do discurso) como farsa, como tragédia, ou como figuras do eterno retorno nietzschiano. Os anacronismos arquitetônicos que se acumulam nas paisagens urbanas e as personagens que reencarnam em novas personagens são exemplos de que, muito embora haja “uma estrada/ de ferro,/ tirana,/ por baixo da aparentemente aleatória trajetória/ humana”, a linha que ela desenha vai se ramificando em formas idênticas, cíclicas, fractais que denotam, paradoxalmente, permanência e trânsito, eternidade e provisoriedade, evolução e estagnação. É como se o poema retraduzisse continuamente a sequência cinematográfica a que alude já em seus primeiros versos: a imagem do osso descoberto como ferramenta no “alvorecer da Humanidade” e sua presença metafórica na cena seguinte, de ambientação futurista.

Alusões ao cinema, como essa, pontuam, aliás, todo o texto. Desde as referências a uma pré-história dessa arte, passando pelo marco dos irmãos Lumière e pela proliferação dos “belos espectros em branco e preto”, as citações se estendem aos mais diversos gêneros de filmes, dos épicos aos de animação, do cinema de arte ao mais característico produto da indústria de entretenimento. Nem há ali sequer fronteira entre o próprio cinema e a arte literária, de modo que cabem num mesmo comentário Ulisses, Leopold Bloom e Dom Quixote, mas também o Gordo e o Magro e personagens da Guerra nas Estrelas de George Lucas. Assim como não há estratificação entre o popular e o erudito, entre a cultura dita universal e as raízes populares regionais, entre o monumento mais antigo e as expressões artísticas do mundo industrial (a coluna de Trajano é uma “tira em quadrinhos de ação contínua que vai em caracol, do chão ao sol...”). É nesse aspecto que identifico o segundo nível de profanação, dos três que ressaltaram em minha leitura.

Desses três níveis, porém, o que melhor justificaria o termo “poético”, estampado na capa do livro, é aquele que resulta da tensão entre o “logos” e os “jogos”, vale dizer: aquele em que o objeto da dessacralização se confunde com a essência do discurso argumentativo, do “tratado filosófico”, que se quer encadeado numa ordem hierarquizada, linear, progressiva (o domínio da hipotaxe). O elemento profanador, nesse caso, consistiria na perturbação dessa ordem discursiva pelo componente lúdico da linguagem poética, que, sem perder o curso do que se propõe dizer, vai simultaneamente se afirmando pelo primado da identidade dos signos, por uma lógica outra, paratática, que rege associações inventivas como a destes versos (os grifos são meus):

Basta um degrau na escada e,
magicamente,
o que se tem é espada,
que outros chamarão sword,
que,
sem suor demais,
será
word...

Esse desvelamento de identidades na dessemelhança refletiria, em certo sentido, aquela mesma ordem de paralelismos que se percebe na representação dos processos históricos, mas incidindo, nesse caso, sobre a materialidade das palavras, (ou seja, sobre aquilo que mais evidencia, no texto, a sua natureza de metalinguagem), para projetar-se, finalmente, sobre a própria trama intertextual do poema. Ali, outra série de analogias se apoia na intersecção metafórica de imagens, formas ou personagens — tais como a que motiva a aproximação entre a Capitu de Machado, a Macabéa de Clarice e a Duína de Marília Arnaud: três destinos que, embora diversos, convergem na condição essencial de serem representações do trágico amoroso encarnado em figuras femininas.

Antes de ser “filosófico”, portanto, o “tratado” de W. J. Solha torna-se “poético”, graças a essa celebração da linguagem, de suas invenções. Única concessão nesse mosaico irônico; única consequência da aventura humana a que o texto presta reverência, a linguagem é, afinal, o próprio Homem que o poema define, qualquer que seja a forma em que ela se manifeste e se converta em arte: cinema, teatro, música, arquitetura etc. — pois “tudo parte do mesmo cômico, épico, lírico/ dramático, risonho,/ claro, coletivo, erótico, herético, hermético,/ tristonho / sonho”. Entretanto, nada é mais exaltado ali do que a forma viva, exuberante, da palavra. Ali está a Palavra. Flagre-se.


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