Ganhei
recentemente (final de agosto a início de setembro de 2013) cinco opúsculos.
Dois romances: Os dias roubados
(Fortaleza: Expressão Gráfica, 2013), de Carlos Vazconcelos, e Enterro sem defunto (Brasília: LER Editora,
2013), de Daniel Barros. Duas coleções de contos: Anônimos (Guaratinguetá: Penalux, 2013), de Paulo Lima, e Matando o porco. Eu contos (Curitiba:
Edição do autor, 2011), de Átila José Borges. E um conjunto de cantos: O afinador de palavras (Fortaleza: Imprece,
2013), de Horácio Dídimo. Li-os, um após outro; ou hora um, hora outro; dia um,
dia outro; enquanto relia Dom Casmurro,
rabiscava capítulos de romance, examinava e copidescava contos, poemas,
artigos, crônicas de colaboradores de meu blog.
Para me
ajudar a redigir esta resenha quase crônica ou esta crônica quase artigo ou
este artigo quase conto ou este conto quase anedota ou esta anedota quase nada,
pedi ajuda a uma de minhas amiguinhas de mesa e divã, a saudável e fresca
Juliana Moura, leitora de Mia Couto, Agualusa, Ondjaki e frequentadora de bares
do Benfica, nesta Fortaleza adoecida pelo excesso de veículos, pela neurose
coletiva e pelos males e os bens da civilização do “petróleo é nosso” e
“ninguém tasca, eu vi primeiro”.
Ora,
estou eu a escrever besteiras, pois ninguém quer mais saber de Monteiro Lobato,
Getúlio Vargas, União Nacional dos Estudantes, nacionalismo e, menos ainda, de
música popular brasileira, samba, “a nêga é minha”, João Roberto Kelly e o
escambau.
Então
fiz à minha amiga de letras um pedido esdrúxulo (haverá pedido não-esdrúxulo?):
lesse as cinco publicações. Voltou ao meu casebre formado de alfarrábios. Sim,
as paredes são tijolos de papel. A sala é constituída de papiros mais antigos:
gregos, latinos, indianos (nem todos, pois o Kama sutra está no quarto onde repouso). No quarto dos fundos...
Ora, basta de informações inúteis. Vamos parar com tanta invencionice. Se
continuar com ela, o leitor me mandará às favas.
A conversa com a estudante demorou toda a
tarde, com breve intervalo para suco de mamão com bolo de cenoura. Na
impossibilidade de transcrever todo o debate, resumi-o assim: Minha pupila deu
o pontapé inicial. Agarrou O afinador de
palavras, como se fosse a bola. E riu: “Não é um livrinho, é um livrão”.
Brinquei: “Deus me livrinho de um livrão enfadonho ou mal-engembrado”. Enquanto
ela gargalhava, eu me esforçava para ser sisudo. Teria percebido a presença,
naquele ambiente ou naquele momento, de dois nomes consagrados da literatura
universal? Além de Horácio, tínhamos Borges.
Promovi
breve pausa. Qual a impressão causada pelo bardo cearense? Adorou sua verve.
Até quando ele se diverte ou faz piada. Concordei com ela: Horácio não nega o
gracejo. No poeminha “Logologia primeira” se lê isto: “Todo poema é de verdade / E de brincadeira”. Porém, não fica nisso.
Tem bons sonetos, em diversos modelos silábicos. Ela concordou comigo. Dídimo
entende do riscado: métrica, rima, verso livre, divisão estrófica,
metapoesia... Sim, e isto se verifica em
“O poema não tem pé nem cabeça” e outros. Fui categórico ou nada original:
Horácio Dídimo é exímio versejador. Isto é, sabe versejar, alinhavar fios
poéticos.
Dei à
minha voz tonalidade de pompa. Pus-me a me pavonear, cheio de sabedoria, na
esperança de empolgar a menina. Ou seduzi-la: Assim como poesia não é só
métrica e rima, prosa de ficção não é só enredo, ação, narração, diálogo. Há
poesia na chamada “literatura de cordel”? Quase sempre não ocorre, porque
amoldada apenas com métrica e rima. E, assim, acontece em quase toda a “poesia
acadêmica” ou “parnasiana” (milhões de sonetos; quadras, sobretudo as
conhecidas trovas; sextinas; haicais etc).
Levantei-me
da cadeira, tão entusiasmado me senti. Falta algo de fundamental na composição
fundada na métrica e na rima. Seria Poesia? Não, não é tão simples assim. No
fundo, inexiste nele linguagem poética. E onde se acha esta tal “linguagem
poética”? Na tradição (o essencial dos melhores cultores da arte poética), na
imaginação do poeta, no uso correto do dialeto literário, na criação de
metáforas etc. Invenção. E tudo isso prescinde de métrica e rima, embora os
alquimistas do verso nunca tenham abdicado delas. Os melhores cultores da
poesia moderna praticam ou praticaram o soneto.
Vi a
aprendiz de queixo caído. Chamou-me de mestre. Não dei ouvidos à bajulação.
Precisávamos correr. O tempo é velocista de pele negra e nós somos lesmas.
Convidei a moça a pegar um dos romances. Ela já folheava Os dias roubados. Dissesse a primeira frase. Disse. O romance de
Carlos é enxuto. É possível até aludir-se a “narrativa concisa”, em vez de
romance. O discurso se constitui de frases curtas, apertadas, espremidas entre
frases mais longas, como para dar fôlego ao leitor. O narrador (“prisioneiro
sem identidade”, como o chama Bolívar Fernandes, um personagem) dirige-se a si
mesmo (talvez). E se cala para ouvir. Por diversas vezes se utiliza do verbo
ouvir: Ouço isso, ouço aquilo. Até chegar a estas palavras essenciais: “Não é justo escutar sozinho” (...)
Impedi
Juliana de dar prosseguimento à explanação. Seria novela ou romance a peça cuja
tecedura verbal recheasse centenas de páginas com ações (conflitos), falas
supérfluas ou repetitivas, além de pesada exposição de fatos, só por isso? Ou é
conto a peça curta só por ser composta de falas e exposição de fatos?
A
donzela me reprimiu. Não atinava com o
motivo de tanta retórica. Os dias
roubados não é romance? Tratei de ser claro. Conheço o primeiro impresso de
Carlos. Neste é visível a evolução, se é cabível aqui este vocábulo. Praticou,
sem piedade, a autoamputação. (Sim, o texto é parte integrante do corpo do
escritor). Livrou-se de alguns cacoetes da prosa tradicional.
Minha
discípula quis mudar o foco do debate: “E isso não ocorreu com Enterro sem defunto?” Talvez. Relatos
centrados nos elementos ação, diálogo, narração e enredo gorduroso terminam no
curral dos bois gordos, prontos para abate. Ou no prato do cotidiano. Pensemos
em outros ‘gêneros literários’, surgidos da miscigenação daqueles (conto,
novela e romance) e de outros (crônica, entrevista, reportagem, carta, diário,
confissão, depoimento etc), como em James Joyce, Franz Kafka, Fernando Pessoa,
Guimarães Rosa, Gilmar de Carvalho, Uilcon Pereira, para citarmos apenas estes.
Será romance Parabélum? Ora, não
existe nem protagonista (o chamado herói). Assim como a trama não é passível de
esquematização. Será romance No coração
dos boatos? Visto por professor de literatura (atado a fórmulas, preceitos,
conceitos), trata-se de amontoado de textos. Há nestes contos e romances
‘novos’ um quê de instigante. Neles percebemos a ausência, às vezes ou quase
sempre, de intriga, ação, protagonista (herói), colóquio. Por vezes, tudo se
mistura, se confunde. Além disso, o talento do escritor se envolve na riqueza
do vocabulário e na expressão linguística trabalhados, tudo de forma remoída,
embaralhada. A imaginação é essencial.
Certa (ou total) repulsa ao chavão, ao lugar-comum, à imitação.
A jovem
não se mostrou interessada por minha lengalenga e se voltou para os dois tomos
deitados na mesinha. Segundo ela, os romances não guardam semelhanças na
aparência. O de Carlos é conciso; o de Daniel, esparramado. No primeiro não se
vê o tradicional travessão junto às falas dos personagens, assim como os verbos
declarativos. A dicção de Carlos Vazconcelos é mais limpa; a de Daniel mais
desleixada, próxima do dialeto coloquial da periferia das cidades.
Daniel
Barros se valeu do flashback, como
observou João Carlos Taveira (segunda aba). E isto leva o narrador onisciente a
percorrer caminhos diversos. São trilhas que se cruzam, se mesclam, se
multiplicam. Taveira viu no uso desse modelo narrativo (não é novo, sabemos) a
possibilidade de o autor desenvolver múltiplos planos da ação. E isso
certamente enriqueceu o romance como peça literária.
Para
não alongar este relato, dedicarei duas frases ao recreio ou ao lanche do meio
da tarde: Comemos bolo de cenoura com suco de mamão. Alice se encheu de
felicidade com os elogios da visita aos seus dotes culinários: “Está apta a se
casar”. De volta à sala de tortura, Juliana Moura logo abraçou os outros dois
volumes. Largou o de Átila sobre a mesinha e se pôs a folhear o de Paulo. Mirou
o céu, à maneira de quem se sente perdida. Não lhe restava nada a dizer, depois
de ler o prefácio de Eduardo Sabino. Tentei ajudá-la. Encontrara algo interessante
nele? Abriu de novo o volume. Na parte final, ele tocou no nervo central de Anônimos: “A clareza da linguagem e o
alto teor de intertextualidade – que, em alguns casos, chega à metaficção –
também são marcas do texto de Paulo Lima”.
Como
não sou de ouvir a mesma pessoa por longo tempo (sinto sonolência), interrompi
seu entusiasmo e rememorei. Cheguei a ler alguns desses contos, antes de serem
levados à impressão. Em breves observações (não sei se Paulo as levou em
consideração), apontei virtudes e defeitos de forma, na sua prosa ficcional.
Chamou a minha atenção a profundidade da análise interior ou cerebral dos
personagens, como em ‘O último ato’.
Impaciente
no divã, a menina arranjou uma pergunta enigmática: “Será um bom contista novo
na praça?” Fui grosseiro (não gosto de ser fisgado com palavras): “Não sei se
será bom. Ignoro sua idade. Nunca o vi. Não faço ideia de onde fica a praça dos
contistas ou do conto. Deve ser a mesma do romance e da poesia. E certamente
está repleta de lixo, mendigos e ratos”.
Ela
espiou para mim, espantada. Desconhecia meu lado malvado, impiedoso e
inquisitorial. Não precisava ser tão estúpido. Pedi desculpas. Dedicasse,
então, dez minutos a Átila José Borges. Discorreu durante meia hora. Quis
dizer, mais ou menos, o seguinte: O título não deixa de ser original, embora
esconda certa pobreza, comparável à do casebre pintado com cores vibrantes. O
verbo no gerúndio e o ponto a dividir o título em dois segmentos não são nada
agradáveis à vista e ao ouvido. Tomei-lhe de novo a palavra. O estilo destes
contos é o dos causos, das anedotas ou histórias contadas pelos mais velhos ou
por mentirosos natos.
Ela não
se atemorizou e soltou a língua. Todo
livro tem serventia. Essa obra deveria ser lida à noite nas fazendas, nas estâncias,
nos sítios, e também nas cidades, nas favelas, para moradores analfabetos, como
antigamente se fazia à luz de lamparinas, nos sertões, com folhetos de cordel,
chamados também de romances.
Estarreci-me
com a sugestão. Onde aprendera aquilo? Sorriu: Nos livros. Tive vontade de
agarrá-la, com a virilidade dos faunos, e beijá-la até o fim dos tempos. Bela
utopia essa! Preferível à do senador muito preocupado com a educação no Brasil:
propôs a leitura ou o estudo dos clássicos da literatura nas escolas públicas
de primeiro grau. Imagine crianças de sete anos, analfabetas, subnutridas, sem
conhecimento do vocabulário mais elementar, às voltas com Dom Casmurro.
Juliana
concordou comigo. Menininha mirrada levantaria a mão: ‘Tia, o que são olhos de
ressaca?’ Aceitei a brincadeira e imitei voz e jeito de professorinha: ‘São os
olhos do teu pai, todo dia de manhã’.
Fortaleza,
11/13 de setembro de 2013.
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