Olá, Maciel,
Li o seu belo livrinho (no sentido físico), pois é
um grande livro em termos de depoimentos, efemérides, registros de pessoas,
fatos e tudo o mais que cerca o fazer literário e o desfazer da alma. Todas as
vezes em que “O Saco” é citado ainda me lembro das cervejas que tomamos, pelos
fins do ano 1976, mais o pessoal do jornalzinho, num bar pelos lados da praia
Formosa, talvez do Meirelles, talvez da Iracema, ou próximo ao Clube Náutico,
ou, parafraseando o Saramago, Deus saberá. Tenho desse dia (noite)
algumas lembranças do Carlos Emílio, de você, e de outros nomes e vultos que se
perderam na bruma do tempo.
A propósito daquele encontro inesquecível
sobreviveu na minha memória a figura do pintor primitivista, Chico Silva. que
saía de casa à noitinha a percorrer os bares nas cercanias das praias. Ele,
Chico Silva, é o que diziam por lá, ia com alguns filhos ou alunos, carregando
suas telas. E em cada bar que parava, tomava umas e outras, numa
providencial meia trava, procurando o equilíbrio pra não vender por menos nem
por mais, e tampouco vender tudo de uma vez, enquanto oferecia suas obras a
preços altos e baixos, conforme a cara e bolsa do freguês. Aliás, naquela
noite regada a cerveja e estrelas do céu e da terra, comprei uma tela com a
marca registrada do Chico – a famosa briga de galos.
Tenho o quadro ainda hoje, bem emoldurado, perto
dos meus livros aqui no Rio. O ano da obra é 1975, com a firma legítima – ao
que parece – do Chico Silva. É uma beleza de pintura, primitivismo puro, dois
galos esplêndidos, de coloridos mil, se engalfinhando e, na minha
interpretação, um arremedo da nossa lida humana, que chamamos de vida, mas, em
verdade, na visão primitivista, é uma espécie de rinha mágica onde brigam o corpo
e a alma, ambos sedentos de imortalidade.
Muitos anos depois, ainda te encontrei em Brasília
– fiz um lançamento de O Clube dos Feios no bar CARPE DIEM – em 25 de
maio, uma quarta-feira, de 1994, a partir de 19 horas, conforme diz o
convite, ainda grampeado num exemplar do livro original e com o endereço que
não me deixa mentir: SCLS 104 – Bloco “D” – Loja,1. Foram cervejas e autógrafos
a valer.
Mas cerveja vai, cerveja vem, volto ao COMO ME
TORNEI IMORTAL. As suas crônicas me trouxeram outras lembranças, principalmente
dos meus tempos quase inocentes em Fortaleza, porque bastou nascer pra virar
“Féa da puta” como dizia um tio meu já embarcado noutra dimensão, e também uma
papagaia, Rosa, que foi minha primeira confidente, anos a fio. Falava
pouco, assobiava muito, dizia alguns palavrões quando tinha fome ou era
provocada. Trouxe a Rosa, pouco maior que uma jandaia, para o Rio de Janeiro,
dentro de uma caixa de sapatos (com furos para ela respirar) num avião
pinga-pinga. Pois no avião, dentro da caixa, no meu colo o tempo todo, Rosa,
além de sujar os jornais com que forrei a improvisada gaiola, não me perdoou
pela façanha e, de vez em vez, falava palavrões que, ainda bem, só eu podia
ouvir.
Foi emocionante me ver e me reviver em todas
aquelas páginas do COMO ME TORNEI IMORTAL sem conhecer pessoalmente 90%
dos homenageados – o que não teve a menor importância, pois li tudo como se os
conhecesse – a todos –. É claro que conheço alguns, ou de letras ou de bilhetes
eletrônicos: Pedro Salgueiro, Jorge Pieiro, Edmilson Caminha, Raymundo Netto,
Carlos Emílio, Soares Feitosa e outros. Fiquei triste ao ler no livro que o
grande poeta Filgueiras Lima – meu professor e diretor do Colégio Lourenço
Filho onde estudei até o 3º ano ginasial – falecera em 1965 com apenas 56 anos.
Aliás, Filgueiras Lima foi quem nos deu a fatídica notícia, de viva e poética
voz, de sala em sala de aula, sobre o suicídio do presidente Getúlio Vargas,
ocorrido no Rio de Janeiro em 24 de agosto de 1954. Lembro que todos os alunos
do Colégio foram dispensados das aulas imediatamente após a notícia dada por
Filgueiras Lima.
Não vou comentar o grande valor literário dos seus
textos, porque isso já está implícito na sua voraz dedicação à Literatura. Mas,
creia, reler todos aqueles nomes outrora familiares para mim, Praça do
Ferreira, Dragão do Mar, Estoril, Casa Juvenal Galeno, Jornal Unitário,
Praça José de Alencar me fizeram muito bem ao espírito. E fique sabendo que
morei a não mais de duzentos metros do Estoril logo que desembarcamos no Ceará
em 1951. Também vi, ao vivo, no Estoril, a mais famosa artista do cinema
nacional da época, a loura Eliana, bem como próximo ao Dragão do Mar, o cantor
Cauby Peixoto no auge da fama. Senti falta, se não pulei alguma linha, dos
nomes dos cinemas Rex, Diogo (onde só se entrava de terno e gravata, mesmo
sendo meninote), Majestic e Moderno que eram do meu tempo, e onde acompanhava
os seriados do Batman, do Super-Homem e as impagáveis comédias de “O Gordo e o
Magro”. Lembrei-me até mesmo do mais famoso ponto de automóveis (táxis) de
Fortaleza daquele tempo: O Posto 9.
Na Fortaleza daqueles tempos, em que palavras como
Livraria Alaor estavam mais perto de Marte ou Júpiter do que dos meus folguedos
na Praça da Bandeira, Praça do Carmo, nas aventuras pelo Rio Cocó, ou pelas
dunas do Mucuripe, e nas famigeradas caças aos calangos e tijubinas com
baladeiras artesanais e pedras de piçarra preparadas por nós mesmos. Enfim,
éramos literalmente moleques e desalmados: matávamos rolinhas, sanhaçus,
sibites, e até beija-flores. Havia a crendice de quem comesse o coração assado
de um beija-flor passaria a ter pontaria infalível para sempre. Durante anos
tive dúvidas, em exames de consciência, se eu realmente comera ou não o coração
assado de um beija-flor, claro que junto com outros moleques, porque
andávamos em bandos de oito, dez, doze. E não é que, em 1963, já no Rio de
Janeiro, prestando serviço militar, em plena tropa, fui campeão de tiro de
fuzil da Primeira Região Militar, tendo meu nome impresso no Boletim do Primeiro
Exército. Minha dúvida acabou ali. Quando cheguei a casa, contei a meus pais a
façanha. Eles discretamente passaram a mão na minha cabeça e nada disseram. Fui
ao quintal dar uma olhada na papagaia Rosa, que ainda vivia (papagaios são
longevos) e confidenciei-lhe a façanha de ser campeão de tiro de fuzil por ter
comido, assado, o coração de um beija-flor no Ceará. Ela me olhou de banda,
como fazem os papagaios, assoviou várias vezes o silvo da família para chamar
atenção, eriçou a esplêndida plumagem e falou repetidamente: “Féa da puta! Féa
da puta! Féa da Puta!”
Mas para não tomar mais a sua paciência, quero
dizer que você me proporcionou além de bons momentos literários, também um
passeio no meu melhor tempo vivido até hoje, e, sobretudo, me ensinou a como
ser mortal, de verdade, pois imortais já nascemos desde que tenhamos alma
cearense. E como costumo dizer aos amigos, saí do Ceará no dia 09 de dezembro
de 1956, mas o Ceará nunca saiu de mim.
Fraterno abraço, e vamos nos falando.
C. Trigueiro
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