Desde a
adolescência, Flaubert sentia desejos insaciáveis e um tédio atroz.
Ele
confessa, em uma de suas cartas, hoje consideradas documentos importantes não
somente pelo que revelam de sua alma, mas como exercício de estilo que proclama
a consagração a um ofício regular e fatigante, ou seja, ao ato mesmo de
escrever que foi a razão da sua existência e que fez dele – o autor de Bouvard e Pécuchet –, segundo alguns críticos e estudiosos, um dos mártires da
literatura.
Entre 1821
e 1852, durante os anos de sua infância e aprendizado, ele escreve precocemente
em carta endereçada a Ernest Chevalier, datada de 24 de fevereiro de 1839, que
não pretende ter nenhuma profissão e que, se vier a tomar parte ativa no mundo,
há de ser como pensador e ‘desmoralizador’, estabelecendo desta forma um
projeto de vida que dele fará um dos maiores escritores da língua francesa:
Não
creia, no entanto, que eu esteja muito hesitante sobre a escolha de minha
carreira. Estou decidido a não ter nenhuma, pois desprezo demais os homens para
lhes fazer bem ou mal…
Gustave
Flaubert (1821–1880), um dos mestres
de Franz Kafka e de Borges, proclama o seu horror à vida e uma obsessão
minuciosa pelo trabalho de escrever e idear uma obra que o representasse no
futuro. Seu ideal de vida se resume em duas premissas significativas de um
projeto aristocrático: viver como burguês e pensar como semideus.
Frequentemente,
por essa época, surge-lhe o desejo de isolar-se do mundo, recolhendo-se a um
porão escuro, munido apenas de uma lâmpada e dos utensílios necessários à sua
atividade de escritor obcecado pela escolha do vocábulo certo e da elaboração
de uma frase que resultaria de uma complicada e dispendiosa alquimia formal.
Ali, nesse
porão que seria o seu arquétipo de caverna platônica, viveria trancado a chave,
sem jamais abrir a porta para visitas, nem mesmo, aliás, para receber a comida
que seria deixada no chão, longe do lugar onde ele se encontrasse; seu único
esforço seria o de caminhar até a bandeja que levaria para a sua mesa e em
seguida comeria, lenta e minuciosamente, como se escrevesse, retomando logo
depois a tarefa interrompida de lançar suas ideias sobre o papel.
Muitos o
consideram, por isso, um dos mártires da literatura. Alguém que sacrificou a
própria vida à escritura de uma obra cuja elaboração minuciosa e fatigante lhe
proporcionaria, em alto grau, delícias e tormentos inenarráveis e que Mario
Vargas Lhosa descreveu como uma “orgia perpétua”, com todas as consequências
que a orgia acarreta, em dispêndio de prazer e dor, para quem a desfruta de
maneira tão visceral e avassaladora.
Seria
Flaubert um escritor para escritores, apesar do êxito pontual de livros como Madame Bovary, que se impôs ao leitor
mediano, sem dúvida, pelo escândalo que provocou ao surgir, dando margem à
polêmica numa época em que o adultério ainda era motivo de vergonha e desgosto.
Hoje,
riríamos de seus motivos. Porém, como ocorre em qualquer um outro grande
escritor, não é aqui o tema que conta, mas a maneira como se conta e o
impecável estilo que resulta de um temperamento obcecado pela precisão de uma
forma que não admite veleidades nem quaisquer cochilos do autor.
Frequentemente
Flaubert levava mais de cinco dias para compor uma única página manuscrita,
trabalhando tanto quanto trabalharia um operário em uma manufatura que
exigisse, além do esforço físico uma jornada que desconsiderasse qualquer noção
de conforto e lazer, algo assim muito próximo da escravidão.
Contudo, seria esse
“mal-estar perpétuo”, além de uma prova de Fé, a garantia de escrúpulos de um
escritor que escrevia em plena consciência e sem fazer concessões à vaidade e a
essa coisa tola e imperdoável, num verdadeiro artista da palavra, a que
chamamos de auto-satisfação.
Por isso,
pode escrever à sua amante Louise Colet, em carta datada de 9 de dezembro de
1852:
[...]
O autor, em sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em toda parte, e
visível em parte nenhuma. A Arte sendo uma segunda natureza, o criador dessa
natureza deve agir com o procedimento análogo. Que se sinta em todos os átomos,
em todos os aspectos, uma impassibilidade escondida e infinita. O efeito, para
o espectador, deve ser uma espécie de assombro. Como tudo isto foi feito? É o
que se deve dizer, e sentir-se esmagado sem saber por quê. A arte grega residia
nesse princípio e para chegar a ele mais rápido, escolhia seus personagens em
condições sociais excepcionais, reis, deuses, semideuses. Não fazia com que
você viesse a se interessar por você mesmo; o divino era o fim.
Flaubert
reconhecia, porém, que o medíocre, por ser mediano, é que seria comum e
legítimo, pois está ao alcance de todos, como provam à exaustão, entre nós,
subliteratos do feitio de um Nelson Patriota, de um Valério Mesquita, de um
Humberto Hermenegildo, de um Cláudio Galvão, de um Flávio Rezende…
Escrevinhadores empedernidos e sem distinção intelectual, resumem vulgarmente o
que é banal e comum na província.
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