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domingo, 29 de setembro de 2013

Gustave Flaubert (Franklin Jorge)



Desde a adolescência, Flaubert sentia desejos insaciáveis e um tédio atroz.
Ele confessa, em uma de suas cartas, hoje consideradas documentos importantes não somente pelo que revelam de sua alma, mas como exercício de estilo que proclama a consagração a um ofício regular e fatigante, ou seja, ao ato mesmo de escrever que foi a razão da sua existência e que fez dele o autor de Bouvard e Pécuchet , segundo alguns críticos e estudiosos, um dos mártires da literatura.
      Entre 1821 e 1852, durante os anos de sua infância e aprendizado, ele escreve precocemente em carta endereçada a Ernest Chevalier, datada de 24 de fevereiro de 1839, que não pretende ter nenhuma profissão e que, se vier a tomar parte ativa no mundo, há de ser como pensador e ‘desmoralizador’, estabelecendo desta forma um projeto de vida que dele fará um dos maiores escritores da língua francesa:
Não creia, no entanto, que eu esteja muito hesitante sobre a escolha de minha carreira. Estou decidido a não ter nenhuma, pois desprezo demais os homens para lhes fazer bem ou mal…
Gustave Flaubert (18211880), um dos mestres de Franz Kafka e de Borges, proclama o seu horror à vida e uma obsessão minuciosa pelo trabalho de escrever e idear uma obra que o representasse no futuro. Seu ideal de vida se resume em duas premissas significativas de um projeto aristocrático: viver como burguês e pensar como semideus.
Frequentemente, por essa época, surge-lhe o desejo de isolar-se do mundo, recolhendo-se a um porão escuro, munido apenas de uma lâmpada e dos utensílios necessários à sua atividade de escritor obcecado pela escolha do vocábulo certo e da elaboração de uma frase que resultaria de uma complicada e dispendiosa alquimia formal.
Ali, nesse porão que seria o seu arquétipo de caverna platônica, viveria trancado a chave, sem jamais abrir a porta para visitas, nem mesmo, aliás, para receber a comida que seria deixada no chão, longe do lugar onde ele se encontrasse; seu único esforço seria o de caminhar até a bandeja que levaria para a sua mesa e em seguida comeria, lenta e minuciosamente, como se escrevesse, retomando logo depois a tarefa interrompida de lançar suas ideias sobre o papel.
Muitos o consideram, por isso, um dos mártires da literatura. Alguém que sacrificou a própria vida à escritura de uma obra cuja elaboração minuciosa e fatigante lhe proporcionaria, em alto grau, delícias e tormentos inenarráveis e que Mario Vargas Lhosa descreveu como uma “orgia perpétua”, com todas as consequências que a orgia acarreta, em dispêndio de prazer e dor, para quem a desfruta de maneira tão visceral e avassaladora.
Seria Flaubert um escritor para escritores, apesar do êxito pontual de livros como Madame Bovary, que se impôs ao leitor mediano, sem dúvida, pelo escândalo que provocou ao surgir, dando margem à polêmica numa época em que o adultério ainda era motivo de vergonha e desgosto.
Hoje, riríamos de seus motivos. Porém, como ocorre em qualquer um outro grande escritor, não é aqui o tema que conta, mas a maneira como se conta e o impecável estilo que resulta de um temperamento obcecado pela precisão de uma forma que não admite veleidades nem  quaisquer cochilos do autor.
Frequentemente Flaubert levava mais de cinco dias para compor uma única página manuscrita, trabalhando tanto quanto trabalharia um operário em uma manufatura que exigisse, além do esforço físico uma jornada que desconsiderasse qualquer noção de conforto e lazer, algo assim muito próximo da escravidão.
        Contudo, seria esse “mal-estar perpétuo”, além de uma prova de Fé, a garantia de escrúpulos de um escritor que escrevia em plena consciência e sem fazer concessões à vaidade e a essa coisa tola e imperdoável, num verdadeiro artista da palavra, a que chamamos de auto-satisfação.
Por isso, pode escrever à sua amante Louise Colet, em carta datada de 9 de dezembro de 1852:
[...] O autor, em sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em toda parte, e visível em parte nenhuma. A Arte sendo uma segunda natureza, o criador dessa natureza deve agir com o procedimento análogo. Que se sinta em todos os átomos, em todos os aspectos, uma impassibilidade escondida e infinita. O efeito, para o espectador, deve ser uma espécie de assombro. Como tudo isto foi feito? É o que se deve dizer, e sentir-se esmagado sem saber por quê. A arte grega residia nesse princípio e para chegar a ele mais rápido, escolhia seus personagens em condições sociais excepcionais, reis, deuses, semideuses. Não fazia com que você viesse a se interessar por você mesmo; o divino era o fim.
Flaubert reconhecia, porém, que o medíocre, por ser mediano, é que seria comum e legítimo, pois está ao alcance de todos, como provam à exaustão, entre nós, subliteratos do feitio de um Nelson Patriota, de um Valério Mesquita, de um Humberto Hermenegildo, de um Cláudio Galvão, de um Flávio Rezende… Escrevinhadores empedernidos e sem distinção intelectual, resumem vulgarmente o que é banal e comum na província.
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