Escrevendo à
Condessa de Noailles, em 1904, confessa Proust que, se procuramos o que faz a
beleza absoluta de certas coisas, por exemplo, a das “Fábulas” de La
Fontaine e das comédias de Molière, vemos que não é a profundidade ou esta ou
aquela outra virtude que parece eminente, mas a diversidade de recursos que
levam à unidade e à superação dos obstáculos que fatalmente se interpõem entre
o artista e a criação de uma obra.
Tem razão
Proust, pensando assim. Dotado da visão poligonal das abelhas que enxergam tudo
ao mesmo tempo, enxergou Proust ao escrever que somente as verdadeiras obras de
arte possuem esse misterioso veludo que resulta desse esforço obstinado a que
chamamos, algumas vezes, de técnica ou de experiência, dependendo de quem fala.
Como na
escritura que se enriquece com as sucessivas reelaborações – ditadas por uma vontade exigente e
inconformada –, na pintura
as diversas camadas de cores superpostas sobre a superfície da tela torna a
matéria plástica preciosa e lhes dá, nuns artistas, o ar compacto e denso que
constitui a sua assinatura; noutros, a transparência da luz obtida pelo virtuosismo
através de uma paciente superposição de camadas duma tinta de tal forma diluída
que cria a sensação de luminosidade, por assim dizer inefável, mesmo quando sob a forma duma mancha
provocada pela intempérie ou pelas injúrias do Tempo, como naquele famoso
pedaço de muro amarelo pintado por Vermeer – que o narrador de Em Busca do Tempo Perdido considerava a mais bela pintura do
mundo.
Somente um
mestre, perito no manejo de sua arte, ou seja, de sua técnica, poderia criar
essa magia ilusionista que resulta da persistência e da prática, da observação
e da experiência, razão pela qual Rilke pôde afirmar que, para descrevermos ou
pintarmos um crepúsculo, precisamos ter visto milhares deles.
Essa carta
de Proust, dirigida a uma poetisa de alguma notoriedade em sua época, elucida o
mistério da criação. Porém, ao contrário de Proust que sacrificou a própria
vida à elaboração do seu romance-rio, por alguns considerado uma catedral de
palavras, Anna de Noailles seria apenas mais uma dessas literatas mundanas e
cultas, embora beneficiada por uma inegável habilidade no manejo das palavras,
mas desprovidas desse verniz característico dos verdadeiros mestres; enfim, uma
entre outras tantas mulheres que, da mesma forma, brilharam por um momento na
constelação das letras e em seguida se apagaram e desapareceram, não
subsistindo sua obra ao perecimento do próprio corpo.
Deveria ser
lida e estudada [essa carta de Proust] por todo e qualquer aspirante a
escritor. Através dela percebe-se, em toda a clareza, quanto a arte exige
daqueles que avassala, reduzindo-os impiedosamente à solidão e ao silêncio, o
que, para as almas fracas – ou não heróicas, segundo a concepção baudelairiana –, seria uma forma de
estar em vida mergulhadas previamente nos vapores do inferno, para onde,
segundo Dante, vão de cambulhada os charlatães.
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