I
Depois
de publicar a edição ilustrada de Clepsydra, de Camilo Pessanha (Lisboa:
Livros Horizonte, 2006) e uma antologia ilustrada de Os Maias, de Eça de
Queiroz (Lisboa: Parceria Antônia Maria Pereira, 2009), além de outras
ilustrações queirozianas em revistas e na Fotobiografia de Eça de Queiroz:
vida e obra (São Paulo, Leya, 2010), o arquiteto Rui Campos Matos (1956)
acaba de lançar A Relíquia: Uma Antologia Ilustrada (Fortaleza; Fundação
Waldemar Alcântara, 2013).
Repara-se,
assim, uma injustiça que se fez em vida ao romancista Eça de Queiroz
(1845-1900), que, ao contrário de Flaubert (1821-1880), sempre deixou claro de
que gostava quando alguma de suas obras era ilustrada, o que só se deu com o
artigo “Três americanos”, que publicou no Almanaque para 1873, os contos
“A perfeição”, “José Matias” e “Suave milagre”, que saíram na Revista
Moderna de Paris, em 1897 e, nessa mesma publicação, A Ilustre Casa de
Ramires, também em 1897.
Como
observa Rui Campos Matos em nota preambular, só bem mais, após a morte de Eça
de Queiroz, é que muitas de suas obras foram ilustradas: O Mandarim em
1916 e 1927, O Crime do Padre Amaro e Os Maias em 1926, O
Primo Basílio em 1928, A Ilustre Casa de Ramires em 1972 e A
Capital em 1999. Além disso, alguns contos foram ilustrados entre 1950 e
1997, em histórias em quadrinhos (banda desenhada), como “A torre de D.
Ramires”, “O defunto”, “S. Custódio” e “As minas de Salomão”, como se pode
constatar em Ilustrações e Ilustradores na obra de Eça de Queiroz
(Lisboa: Livros Horizonte, 2001), de A. Campos Matos (1928), pai do ilustrador
e reconhecidamente o mais notável de todos os estudiosos da obra queiroziana.
II
Se A
Relíquia precisou esperar mais de um século para ganhar uma edição
ilustrada, não o foi por falta de atrativos para os ilustradores. Afinal,
trata-se de uma história narrada por Teodorico Raposo, o Raposão, que se faz
passar por alguém dotado de fervor religioso para ludibriar uma tia ria e
fanática e convencê-la a financiar-lhe uma viagem à Terra Santa. Em
contrapartida, resolve trazer de Israel uma coroa de espinhos que teria sido
extraída da mesma árvore de onde se tirara o instrumento que martirizou Jesus
Cristo. A “relíquia” destinar-se-ia a livrar a tia de todos os males e achaques
de que padecia na idade provecta.
Por
má sorte, Raposão, ao retornar, faz uma confusão ao misturar alguns pacotes e,
na hora de abrir o seu, a tia, em vez de encontrar a “relíquia” pela qual tanto
ansiava, encontraria a camisola de Mary, uma meretriz inglesa com quem o
sobrinho ladino fizera amor em Alexandria. Assim, a fortuna da velha beata, em
vez de ir para as mãos do sobrinho devasso e estróina, iria mesmo para os
padres de Lisboa que viviam a adular e a explorar a credulidade da senhora.
III
Claro
está que uma história desta, se ainda hoje por sua comicidade serviria com
bastante sucesso para uma minissérie de TV ou mesmo um filme de longa metragem,
mais ainda está à medida para a pena de ilustrador sagaz e eclético como Rui
Campos Matos. Em Eça de Queiroz: Uma biografia (Porto, Editora
Afrontamento, 2010), A. Campos Matos dedica um capítulo, reproduzido em A
Relíquia: Uma Antologia Ilustrada, que resume algumas recensões feitas
dessa obra que constitui a única aventura do autor na literatura picaresca que
nasceu na Espanha com El Lazarillo de Tormes (1554), de autor anônimo, e
ganhou foros de gênero com El Guzmán de Alfarache (1599), de Mateo
Alemán (1547-1615?), e El Buscón (1626), de Francisco de Quevedo
(1580-1645).
Se
o Raposão não preencheria os requisitos necessários para ser classificado como
um pícaro medieval – e não poucos críticos o consideraram um “pícaro falhado”
–, não se pode deixar de admitir que, em muitos pontos, seu comportamento se
assemelharia ao de um neopícaro dos nossos dias em seu charlatanismo e
capacidade de iludir o próximo. Esta farsa ataca de modo corrosivo o
desvirtuamento da religião católica e a cupidez do dinheiro daqueles que se
apresentam como propagadores da fé cristã e procuram, no fundo, apenas
ludibriar as pessoas de boa vontade, de olho apenas no usufruto dos bens
materiais.
Diz
A. Campos de Matos que a tradição crítica portuguesa sempre foi desfavorável à A
Relíquia, enquanto a critica estrangeira a viu simplesmente como uma
obra-prima. A avaliação definitiva veio do renomado crítico norte-americano
Harold Bloom (1930) que, em Gênio: Os 100 autores
mais criativos da história da literatura (Rio de Janeiro: Objetiva,
2003), escreveu que Eça “reuniu Voltaire (1694-1778) e Robert
Louis Stevenson (1850-1894) em um só corpo, propiciando-nos um romance genial
e, ao mesmo tempo, uma sátira extraordinária, um triunfo literário singular”.
Por
tudo isso, esta edição de A Relíquia merece estar na prateleira de todo
colecionador de Eça de Queiroz e também nas bibliotecas dos cursos de
Literatura Portuguesa das faculdades de Letras, agora enriquecida pelas
divertidas ilustrações de Rui Campos Matos.
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A RELÍQUIA: UMA ANTOLOGIA ILUSTRADA, de Eça de Queiroz, com ilustrações de Rui Campos
Matos. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 100 pág., 2013. Site:
www.fwa.org.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage –
o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio
de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2012). E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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