(Silas Correa Leite)
Para Domingos Pellegrini
Onde quer que vejais uma
lenda,
podeis ter certeza, se a
investigardes
a fundo, que encontrareis
uma história.
Vallet de Viriville
Ao
pó, o pó?
Está na Constituição, nossa carta magna, o direito à livre expressão.
Assim como paradoxalmente o nosso Código Penal preconiza sanção para calúnias e
difamações. Isso posto, surpreende-me que alguns filhotes não tão ilustres de
pais ilustres, mas não santos, queiram censurar vidas e fatos, imagens e
palavras, erros e acertos, dicotomias e periclitações de grandes personalidades
retratadas como, desculpem, arrendondadamente “humanas”.
Bem, se formos retratar a vida total e ampliada nos detalhes de ilustres
personalidades da História, de Moisés a Marco Polo, de Roberto Carlos a Paulo
Leminski, de Pelé a Paulo Coelho, de Chico Buarque a Luiz Ruffato, de Dias
Gomes a Hebe Camargo, claro que, por serem pessoas ‘humanas’ mesmo, aqui e ali
valoradas com qualidade e talento, ou com holofotes e plumas, com criações
geniais ou maracutaias, ponhamos assim, não são santas, não são santos, e vai
acontecer de serem relatados fatos reais (e humanos) de traição a
alcoolismo, de baixa estima a depressão, de falta de banhos e cerotos
familiares, de carnegões a improbidades, de desmandos, mentiras e outras,
ponhamos, impurezas no branco nu e cru da vida-livro focada, como ídolos de
barro como realmente todos nós somos e são, decompostos, portanto, aqui e ali, os
mitos, as lendas, porque a verdade nua e crua dói na saudade mas não deixa de
ser fato no historial todo, e, não podemos querer colocar vernizes novos em
impurezas datadas com medo de parecermos que não somos o que somos e vice
versa.
Entendo perfeitamente a ótica dos sensíveis descendentes sob mira de
ocasião editorial que seja, compreendo que a saudade e a dor querem cristalizar
o lado bom do biografado, perolizar só o brilhantismo, ficando só com as boas
lembranças, quando não sabem exatamente os descaminhos e impunidades soletradas
em páginas de rosto, páginas de vida social ou marginal, porque, a bem dizer,
ninguém sendo santo – debaixo do sol tudo é vaidade – querer santificar
uma biografia é ser estúpido e não querer que a verdade naturalmente nua e crua
venha à tona, doa o que doer, custe o que custar, até porque, falando sério, se
fosse santo não seria genial, e eu, que não acredito em santo nenhum, adoro o
homem exatamente isso mesmo, louco, com seus erros circunstanciais, métodos
maus, vampirismos, preguiças, vícios; suas tramóias “humanas” que o fizeram ser
o que foi, mudar o que o visionário sonhou, pintar e bordar com errações e
purgações, com as mãos sujas ou com atos vis, tudo isso parte do ser humano
propriamente dito. Vão querer canonizar o escárnio?
Imaginem se fossem contar o que o Caetano Veloso pintou e bordou pelas coxias da vida belamente desregrada, antes dele ser hoje esse coxinha defensor da impune e amoral tucanalha do psdb do demo made in Samparaguai, o estado máfia, de ser censor de biografias exatas, com medo pequeno, talvez, por que não, de que algum louco pesquisador obstinado debruce sobre seu lado nada alegria alegria, entre micos, breguices, experimentações bizarras, drogas, galinhagens e afins, porque, decerto, como ‘de perto ninguém é normal’, desperto o monstro a realidade embrutece o pesquisado, despido o mito vem à tona o rufião catatau, o pecador saradinho, o marginal convertido ao sistema podre, o sururu embrutecido, engodos e arremedos, o plagiador dissimulado, o ególatra poliglota e afins e desconcertezas. Filhos? Porque “qui-lhos”?
Quantos muitos heróis anônimos morrem à míngua, mil vezes melhores do que
aqueles que ficaram famosos porque midiáticos, e o tempo, décadas, centenas de
anos depois, quando não séculos, milênios, são evocados porque foram ótimos,
não valorados no seu tempo, mas reconhecidos como geniais depois de mortos,
quando, aqui e ali, alguns, bem-aventurados pela sorte de um mecenas, um
padrinho pop, conseguem escalar a montanha sagrada do sucesso-dragão, e, vá se
ver, tantos se prostituíram para isso, testes de sofás a parte foram escadas,
de namoro com Pelé a barbeiragens de egos, morais e costumes, e, por fim, o
tempo que é o melhor juiz, retrata mesmo, se o sujeito para ser o que foi
pintou e bordou, como um mero Paulo Coelho da vida que vende muito, faz
sucesso, mas os livrecos rastaquaras são encontrados a preço de banana nos
sebos como refugos, e, no funil da história, ficam as obras primas mesmo, os
que foram além do pop e cult e
midiáticos de ocasião, porque a vida é assim, afina instrumentos, mas os
solos são próprios, originais, humanamente corrompidos, pífios, triviais,
quando não ignóbeis e vis, humanamente possíveis de erros, porres,
maledicências, e muitas famílias foram abandonadas à míngua para que alguns
mitos se fizessem, muitas vodkas
foram consumidas – melhor morrer de vodka
do que de tédio – para que o medo da cirrose ou la vie en rose fosse apenas um fulcro, e o famoso acabou sem eira
nem beira... quando não deixando familiares a ver navios. Se formos falar em
ética, humanismo de resultados, transparência, vidas puras de sucesso, cite o
ai algum, famoso quem? Vamos querer colocar alvaiade em máscaras?
Roberto Carlos? Adoro meu ex-rei. O meu mito da água com açúcar Jovem
Guarda, desde os tempos do “que tudo mais vá para o inferno”, até o fato
notório de ele ter sido, por assim dizer, inocente-útil aliado-marionete da
canalha de 64, ou mesmo do acidente que problematizou sua vida artística toda,
que ele esconde, tem medo, um medo-rabo entre as pernas, talvez por isso
mesmo, por esse motivo, essa tristeza lítero-musical de ele ter sido um
romântico-triste que venceu, vendeu e se tornou mito, mas tem vaidades,
crendices, toleimas. E as barbeiragens do tal Rei Pelé que só com a bola no pé
é genial, ídolo de barro enquanto humano, sofrivelmente humano, socialmente um
zero à direita, coió de tudo? Por essas e outras, que anônimo de nós não
gostaria de ser futural celeuma numa biografia não autorizada, fazendo chover
no piquenique das ideias, pesquisas e famílias entrincheiradas em mesmices
censoras ou querendo achar que o que é real tripudia, ou que o que é humano e
naturalmente natural desencanta o mito, sangria desatada apequenando quem
defende o indefensível?
Meus ídolos morreram na guerrilha. Ou de overdose. Se ficassem velhos
continuariam geniais e com egos perigritantes? Porque de bom-mocismo nenhum se
incluiria, achismos, cirroses, ocultismos e mentalidade pequena de família
pequeno-burguesa a parte. Ou, como digo num poema:
La Vie En Rose
Leminski morreu de poesia
Ou de cirrose; se vivo fosse
Naturalmente um outro seria
Talvez vencedor de posse
Caetano que fugiu pra Londres
Não morreu e se socorre
A escrever bugigangas hoje
Como se nunca existisse
Hendrix, Joplin; até Cazuza
Se não morresse o que seria?
Lupicínio não se fez num dia
Só no infinital da boemia
Renato Russo, Torquato, Capinan
Um parafuso a mais tantas vezes
(Ou o anonimato de uma neura vã
Em celeiros de burgueses?)
A vida é cor-de-rosa na juventude
Depois o decrépito vive amiúde
E na velhice a arte louca vegeta
Artista, vanguardista, poeta
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Morrer criando toda glosa
Em verso e samba e prosa
Foi o clímax de Noel Rosa
Idolatrado
Morrer de velhice por aí
É muito triste ao condenado
Feito Caymmi ou Cauby
Cada um de si mesmo em si
Beirando ser esclerosado.
Melhor morrer no auge a criar, de overdose
Jovem portentoso - no suicídio ou na cirrose
Ou restar-se à decadência vil, pobre coitado
E à existência reles e comum ser condenado
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Marx batia na mulher//William Burroughs matou a esposa//Paul Celan se
matou//Baudelaire fumou maconha//Pound era fascista//Rodin roubou esculturas de
Camille Claudel//Madonna se prostituiu//Louis-Ferdinand Céline apoiou o
nazismo//Proust sacrificou animais//Rimbaud era sujo e piolhento//Foucault
transava com desconhecidos//Manuel Bandeira era tuberculoso//Drummond era
tachado de “poeta funcionário público”//Fernando Pessoa morreu de cirrose (o
vinho do Porto é feroz)//A mula sem cabeça da Rachel de Queiroz era amante do
sem pescoço do primeiro general ditador Castelo Branco da canalha de 64...
E o próprio Paulo Leminski enunciou “Ditaduras, genocídios, censura,
fracassos econômicos, distribuição de miséria para muitos e privilégios para
poucos.” (Paulo Leminski, In, Passeando
Por Paulo Leminski, Domingos Pellegrini, – reprodução permitida).
Quando eu morrer? Senta a pua. Todo mundo queria ser retratado, mal biografado
ou não. Mentira? Provem. Verdades doem, mas, censurar, piora o desenredo. Tenho
em Paulo Leminski um grande poeta, mas também foi grande e pouco pop a Helena
Kolody, como até mesmo é pouco pop o genial Dalton Trevisan, vampirizando
Curitiba com suas insanidades pessoais que nem Freud explica, mas retrata com
brilhantismo genial uma cidade, uma sociedade, uma vida, tantas sociais
hipocrisias de carnegões em derramas de contações. E Sylvio Back, pouco valorado
e também tão genial quanto Glauber Rocha? Por essas e outras, qualquer
escritor, artista ou gênio, precisaria de um Caetano Veloso qualquer na vida
para jogar luz em cima, só o tempo depois provando se o que de fato foi
ventilado é mesmo de valor real, e só mesmo o lado humano e coerente para sacar
que, sim, temos flatulências, porres homéricos, malfeitos no curriculum vitae,
arrotamos grandezas impudicas, o que cria é o ego e o que deveria julgar é o
id, por essas e outras rascunhos, fãs clubes, alvoroços dúbios ou saçaricos de
clãs não valoram as verdades puras e simples, e quem quer transformar mitos em
santidades de pau oco, quando beber e criar é uma parceria que abraçou Vinicius
de Moraes e nunca se viu alguém dizendo que ele foi santo (e era filho de santo
em terreiros etílicos), mas que pintou e bordou, de candomblés a embaixadas e,
independente de erros e acertos, tem o seu valor quanto a isso mesmo, artista e
humano, ser humano e criador, laboratório de si mesmo entre uísques e alcovas e
patacoadas notívagas.
Querer santificar o sujeito biografado como ser real e humano,
perdidamente humano, não é lição que qualquer ilustre biografado post-mortem
concordaria em plena e sã consciência. Deixem os mortos enterrar seus mortos.
Deixem o Catatau ser enormemente e humanamente catatau, e vamos parar de ser
medíocres com romantismo de clã atropelados pela história. Deixemos de ser
provincianos, querendo santificar o ocasional efêmero, o embuste passageiro, o
erro de percurso revisitado, o fígado que faz mal pra bebida, o que veio para
fazer chover na horta, não para ser santinho de pau oco ou de mesmice-formol
entre anões de jardins.
E fica o dito pelo Polaco.
“O machado floresceu”.
Paul Celan.
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*Silas Correa Leite, poeta e ficcionista, jornalista comunitário e professor. Prêmio Paulo Leminski de Contos, Unioeste, PR; Prêmio Lygia Fagundes
Telles para Professor-Escritor, Governo do Estado de São Paulo/Secretaria de
Educação/Secretaria de Cultura de Telêmaco Borba, PR. Criado em Itararé,SP,
radicado em São Paulo. Autor de Goto, a Lenda do Reino do Barqueiro Noturno do
Rio Itararé, romance, Editora Clube de Autores, 2013.
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