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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Um ex-escritor em sua maior infelicidade (Nilto Maciel)




Passei todo o 7 de novembro à espera de Lavínia Medeiros. Acordei com os galos, cantei Luis Gonzaga, tomei banho demorado e li alguns contos de Mundinha Panchico e o resto do pessoal. Demorei-me no jocoso “O ex-operário Expedito em sua maior felicidade”. Havíamos marcado o encontro para o meio da tarde. Por volta das 16 horas, dei início a uma série de insultos, primeiro em forma de murmúrio e, por último, quase aos gritos: Safada! Mentirosa! Trapaceira! E, só à boca da noite, me dei conta do engano imperdoável: a reunião seria no dia 8. Então pedi a Lavínia mil desculpas, ajoelhei-me diante da imagem de minhas filhas e me amaldiçoei: Caduco! Danado! Maluco!


Dormi tranquilo, despertei também de madrugada, cantei Nelson Gonçalves (“a flor do meu bairro tinha o lirismo da lua, morava na mesma rua, num chalé fronteiro ao meu”), tomei demorado banho e agarrei, pelo espinhaço, a velha Mundinha Panchico. Quando cuidei, senti fome. Deixei pela metade o ex-operário expedito e voei até o restaurante de minha preferência.

No meio da tarde, ainda agarrado aos relatos de Juarez Barroso, apareceu-me a belíssima rapariga Lavínia, viçosa feito rosa no campo. Atordoado, larguei-lhe aos pés o tomo. E me derreei no sofá, estafado, quase morto. Que livro é este? Sem pedir permissão, abriu o volume, de cabo a rabo, e chegou ao ex-operário. Pôs-se a soletrar, em voz alta: “Era o automóvel mais bonito da praça: preto reluzente, comprido, num esbanjamento de vidros e metais cromados, vistoso como um navio, singrando veloz o calçamento desigual da 14 de Julho, espantando meninos”. Assombrada, virou-se para mim. Quem é esse monstro? Tomei-me de sinceridade: Um dos maiores escritores brasileiros em todos os tempos, minha pequena deusa. E onde mora, onde vive? De tão grande, não se pode mais vê-lo. Como? Agigantou-se, sumiu, subiu aos céus, desaparecéus.

Nesse momento, lembrei-me de velho amigo, escritor... Não, não se trata de escritor, mas de ex-escritor. E existe ex-escritor? – admirou-se a menina. Sim. Um deles eu o encontrei no início deste mês, na Praça do Ferreira. Havia mais de 30 anos eu não o via nem dele tinha notícia. Julgava-o morto.

Ainda tentou fugir de mim, escondeu-se numa loja, busquei-o e o arrastei para céu aberto. Venha cá, à luz do sol, seu cabra safado. Por onde andaste, quais mundos percorreste, durante esses últimos trinta anos? Levava as mãos ao rosto, tentava escapulir de minhas garras, esconder-se em qualquer loca, na vã tentativa de se livrar definitivamente do passado. (E se diz cheio de vergonha).

Lavínia aparentava estarrecimento. O homem cometera crime hediondo? Não, não perpetrara delito nenhum. Pelo contrário, praticara a mais nobre das virtudes: abdicara do direito de rabiscar papéis. Por isso, tornara-se ex-escritor. Lavínia nunca ouvira uma só referência a esse tipo humano. Existe isso? Ora se existe! No entanto, o “ex” mais importuno não é o ex-escritor, minha querida. Você já conversou com ex-fumante? Sim, muitas vezes. E eu os admiro muito. São verdadeiros heróis. Concordei com ela: heróis e desagradáveis. Você já ouviu algum ex-fumante se referir à crise do capitalismo, à origem do Universo, ao apocalipse? (Não vale dizer sim, se se referir a algum novo evangélico ensandecido – com perdão pela redundância). Ela riu. Para ex-fumante, só existe um assunto: o cigarro, o fumo, o vício do tabaco. São infindáveis minutos de tortura e pregação. E haja câncer, enfisema pulmonar, a morte dolorosa e lenta.

Mudei bruscamente o rumo da conversa. Deixei para trás o ex-fumante e fui buscar o ex-padre. Você conheceu algum ex-padre? Levou o indicador aos lábios, como se se encontrasse mergulhada na mais profunda meditação. Não, não me recordo de conhecer ou ter conhecido algum ex-padre. E expliquei: Refiro-me a um dos mais interessantes modelos da sociedade ocidental moderna. Na maioria dos casos, casou-se com mulher bonita e com idade de ser sua filha ou neta. Vive a rir e a criticar a Igreja (precisa se modernizar, aproximar-se da nova era, das necessidades do povo). Não se proclama de esquerda, apesar de ser a favor da legalização do aborto, do casamento homossexual, do amor-livre. Às vezes, traz à tona vaga reminiscência de Cristo, da Bíblia, de templos. Chega a fechar os olhos, de tão contritos. Súbito, cai no riso e abraça a companheira. Esse exemplar é facilmente reconhecível em reunião, barzinho, restaurante. Se encontra ex-fumante, põe-se logo a pregar: “Você não sabe como é bom amar, como o amor constrói...”.

Logo me ocupei de outro modelo de ex; por sinal, exemplar: ex-menino de rua. São doutores, muitos deles de cor preta, e não param de evocar, com orgulho, a maravilhosa mudança ocorrida em sua vida, sem esquecer os dias de miséria, o pai sumido, preso ou morto, a mãe alcoólatra. Detestam futebol, televisão, literatura, cinema, religião, todo e qualquer motivo para reflexão diverso daquele. A matéria para discussão diária é o próprio universo de menino de rua. A todo o momento, mistura o pretérito ao presente: “Me formei em Direito, exerço alto cargo de confiança, e ninguém acreditava em mim, tenho minha casa de praia, nada parecida com aquele barraco na favela, na garagem há sempre um carro importado”.

Lavínia quis saber se existiam ex-deputado, ex-senador, ex-governador. Sim, minha jovem. E sabe qual o objeto de ponderação preferido deles? Sempre a sorrir, não conseguem esquecer os corredores e jardins do palácio ou da assembleia, como se de um ou de outro ainda fossem inquilinos. Não se lamentam de nada. Às vezes, se dizem cansados. Ora, deram tudo de si pelo povo. Alguém pergunta: E pensa em voltar ao cargo, em se candidatar novamente? Ora, ora. Isso fica por conta do partido e do povo. São “ex” muito alegres e bem vestidos. Também não se interessam por assuntos diversos desse. “E aquele projeto de escrever uma história?” “Bem, deixemos isso para ocasião oportuna”.

Lavínia não parava de rir. Deslocamo-nos para a figura de ex-presidente da república. Sempre em voga (aqui e ali está em tela ou página de revista ou jornal), culpa o decorrer do tempo pelo ostracismo no qual vive. Poderia ainda realizar muito por seu país. Acusa o fluir dos anos e a Constituição Federal, pois, não fosse o limite constitucional de apenas dois mandatos seguidos, ainda seria o presidente. Ou, quem sabe, o ditador perpétuo.

Chamei minha secretária Alice. Preparasse a merenda, pois nossas bocas se tinham ressecado. Antes de nos dirigirmos à sala de refeições, ainda tagarelei a respeito do modelo clássico de ex-comunista. Lavínia se interessou muito pelo novo personagem. Como a gente os reconhece e qual o tema de suas falas? Fiz-me enfático: ex-comunista é igual a fascista ou anticomunista. São personagens comuns, reconhecíveis de longe. Basta você puxar conversa: “Irá chover hoje?” A resposta vem na hora: “Com esse governo aí, cheio de comunistas, não é possível nem o mais raquítico dos invernos”. Se alguém fizer a menos significante queixinha, dessas bem pessoais, imperceptíveis aos olhos atentos do povo (como: “Pôxa, amigo, hoje amanheci com uma dor de cabeça danada!”), o sujeito terá a explicação definitiva: “Dor de cabeça o povo tem desde a posse de Lula. Falta emprego, a comida desapareceu, a saúde não deixou rastro. Enquanto esses comunistas não morrerem, será assim. Sua dor de cabeça não desaparecerá”.

Comíamos bolo de abacaxi com suco de cenoura. E eu a gracejar: Semelhantes a esse tipo, podemos ainda mencionar ex-namorado ou ex-namorada, ex-amante, ex-marido. São irritantes. Tudo de ruim em suas vidas é por causa do ex ou da ex. Ex-marido é o mais insuportável deles. O coitado vive a se lamentar: desde o infeliz minuto em que conheceu fulana até os anos de desgraça vividos ao lado dela.

Chegávamos ao ponto crucial da tarde: ex-mulher. Lavínia se mostrou desinteressada: Não seria o mesmo caso de ex-marido? Não, (brinquei), porque ex-mulher não existe. A garota se estarreceu: Como não existe, Nilto? E dei continuidade à galhofa: Só há uma possibilidade: a mulher se submeter a cirurgia, para implante de pênis e outros apetrechos masculinos.

Entretanto, precisamos voltar ao caso do ex-escritor. Então a tarde ia morrendo na Praça do Ferreira (e talvez em toda Fortaleza). A brisa sacudia minha cabeleira. Meu ex-colega tentava escapar de mim. Eu o prendia pelo braço: Fale da dificuldade de deixar de engabelar os leitores e a si mesmo. Ele me parecia mais infeliz do que quando nasceu.

E evoquei o final do conto do ex-operário: “Caiu na rede, virou-se para um lado. A mulher não disse mais nada e Expedito foi logo dormindo”.

Fortaleza, 15/17 de novembro de 2013.

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