Dos objetos
de arte recebidos no final de novembro de 2013, uns deixei a dormir na estante;
com outros fiquei horas. Se os carteiros não entrarem em greve e se eu ainda
fizer parte do clube dos leitores abençoados por Deus, espero ganhar muitos
outros, até o último minuto deste ano. E preencher mais algumas linhas de meu
caderno de inutilidades.
Hoje devotarei duas folhas a dois deles: No osso: crônicas selecionadas (Rio de Janeiro: Cais Pharoux, 2012), de Alexandre Brandão; e Metacrônica (Fortaleza: Armazém da Cultura, 2013), de Simone Pessoa. Entreguei-me a eles por duas noites. Na terceira, dirigi-me à casa de Cleto Milani: “Venho trazer-lhe um presente, meu velho sátiro”. Ele só faltou se ajoelhar aos meus pés. “Leia tudo. Quando se der por satisfeito, vá à minha vivenda. Para longa conversa, assuntos não faltarão”. No quarto dia, rabisquei alguns pareceres a respeito desse gênero cada vez mais polimorfo. No quinto, ele me telefonou: “Estou boquiaberto”. No sexto dia, se disse extasiado. Ou terá sido extenuado? No sétimo, deu-se a visita dele ao meu refúgio. Varamos a tarde em conversa fiada. À noite, garatujei este relato e dei por acabada (pronta) a nossa obra. Iniciava-se mais um sábado.
Mal nos acomodamos no sofá, escorri a mão pelo queixo (a barba, por fazer, me deixava nervoso): “Esse Alexandre Brandão domina a arte de escrever. E não me refiro apenas à correção gramatical, que isso se aprende cedo na escola. Ou se aprendia. Sem receio ou preconceito, ele aborda todos os temas. Vai de brincadeira gostosa com as palavras (em ‘O mundinho das palavras’ – quanta criatividade!) até visitas aos dias antigos, às casas da infância, às pessoas de seu convívio. Passeia, despreocupadamente, pelos vastos salões das palavras, das ideias, dos fatos, das gentes: ‘Nesse instante, chegamos ao subúrbio de nós mesmos, onde reciclamos o que somos’ (p. 23). Porta-se como o flâneur sereno e, ao mesmo tempo, alerta aos movimentos do mundo”.
O ancião se coçou todo. Ansiava por soltar o verbo: “O bom desses textos é a leveza; se pesados, se tornam muito sérios, viram contos, poemas ou descambam na direção de outro gênero”. Completei o pensamento dele: “Só não gosto da facilidade com que alguns buscam o caminho da piada. Na presunção de alguns cronistas, o leitor está sempre disposto a rir de tudo. E então cometem os mais graves pecados inerentes aos redatores: tornam-se ridículos. Veja a leveza da pena de Brandão: ‘Tive, em menino, um cachorro independente, vagabundo da melhor estirpe. Esteve em minha casa por uns bons dez anos e nunca tomou banho. Se ouvia a palavra água, fugia’ (p. 95). Isso, sim, é arte”. E ainda me fiz de professor: “A crônica é como prostituta de calçada. Oferece-se ao mundo inteiro. Quem tiver dinheiro, aceitará o convite. Mais um passo, e cairá aos pés da vulgaridade”.
Desconfio de mim, quando evoco o nome de Simone Pessoa. O resenhista sorriu, malicioso: “Por que, seu Nilto?” Além de sermos amigos, a editora de sua seleta é a mesma dos meus aranzéis. Pois há outro catatau de minha autoria em fase de acabamento no Armazém da Cultura. O vovô se alegrou: “Então deixe comigo”. Deixei e ele se entusiasmou: “Metacrônica está aparentemente bonito...” Repliquei: “Está porque é. E não é só ele. Todos os impressos do Armazém têm boa aparência e acabamento gráfico de primeira”. Cleto se mostrou zangado, como se eu o tivesse advertido. Não tive pena dele e libertei todos os elogios guardados na gaveta.
Nas abas, ‘A Editora’ (será Albanisa Dummar?) fez observações capitais: referiu-se à linguagem de Simone (‘fluente, ágil, dotada da força da eletricidade e de uma mansidão rara’...) e dos assuntos por ela tratados: ‘tão variados e, paradoxalmente, tão semelhantes’. E fez outras ponderações: Simone é aquele ‘tipo raro de escritor – aquele capaz de ir em todas as direções possíveis sem jamais perder seu próprio rumo, sua própria voz’. Quem tem editora assim não precisa de editor, nem de prefaciador ou apresentador. Ousei completar o palpite: “A crônica não precisa ser leve à maneira de poeminha de menina nem se aproximar demasiadamente da anedota. E Simone consegue fugir dessa tentação. Lida com matérias diversas, atenta ao significado das palavras: ‘Sempre me encantei com o poder da palavra, sobretudo o da palavra escrita’”.
Ainda nos faltava reler o prefácio, minúsculo texto do gaúcho Paulo Bentancur. Então me atrevi a encerrar a tarde assim: “A linguagem de Simone é usual, de todos nós (exceto dos narcisistas radicais), sem afetação de literato metido a inovador ou revolucionário. Existem uns malucos preocupados com dedicar todo o tempo possível a arquitetar tramas verbais tão enigmáticas quanto a formação do Universo. Na opinião de Simone, o artista maior é a Natureza”.
O visitante arrumava papéis, canetas, óculos: “Acabou?” Quis vê-lo afobado: “Não, não acabei; ainda tenciono consagrar dez minutos ao...” Saltei do sofá, no afã de assustar o velhinho. Ou de me acordar. Pois, salvo engano, essas horas de leituras e discussões não passaram de sonho. Ou teremos sonhado ambos, eu e o escrevinhador, com Simone, suas peripécias verbais, seus modos peripatéticos de abordar os tópicos de abelha a zebra? Sei lá.
Fortaleza, 4/5 de dezembro de 2013.
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* Visite: Ceará Literário
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Hoje devotarei duas folhas a dois deles: No osso: crônicas selecionadas (Rio de Janeiro: Cais Pharoux, 2012), de Alexandre Brandão; e Metacrônica (Fortaleza: Armazém da Cultura, 2013), de Simone Pessoa. Entreguei-me a eles por duas noites. Na terceira, dirigi-me à casa de Cleto Milani: “Venho trazer-lhe um presente, meu velho sátiro”. Ele só faltou se ajoelhar aos meus pés. “Leia tudo. Quando se der por satisfeito, vá à minha vivenda. Para longa conversa, assuntos não faltarão”. No quarto dia, rabisquei alguns pareceres a respeito desse gênero cada vez mais polimorfo. No quinto, ele me telefonou: “Estou boquiaberto”. No sexto dia, se disse extasiado. Ou terá sido extenuado? No sétimo, deu-se a visita dele ao meu refúgio. Varamos a tarde em conversa fiada. À noite, garatujei este relato e dei por acabada (pronta) a nossa obra. Iniciava-se mais um sábado.
Mal nos acomodamos no sofá, escorri a mão pelo queixo (a barba, por fazer, me deixava nervoso): “Esse Alexandre Brandão domina a arte de escrever. E não me refiro apenas à correção gramatical, que isso se aprende cedo na escola. Ou se aprendia. Sem receio ou preconceito, ele aborda todos os temas. Vai de brincadeira gostosa com as palavras (em ‘O mundinho das palavras’ – quanta criatividade!) até visitas aos dias antigos, às casas da infância, às pessoas de seu convívio. Passeia, despreocupadamente, pelos vastos salões das palavras, das ideias, dos fatos, das gentes: ‘Nesse instante, chegamos ao subúrbio de nós mesmos, onde reciclamos o que somos’ (p. 23). Porta-se como o flâneur sereno e, ao mesmo tempo, alerta aos movimentos do mundo”.
O ancião se coçou todo. Ansiava por soltar o verbo: “O bom desses textos é a leveza; se pesados, se tornam muito sérios, viram contos, poemas ou descambam na direção de outro gênero”. Completei o pensamento dele: “Só não gosto da facilidade com que alguns buscam o caminho da piada. Na presunção de alguns cronistas, o leitor está sempre disposto a rir de tudo. E então cometem os mais graves pecados inerentes aos redatores: tornam-se ridículos. Veja a leveza da pena de Brandão: ‘Tive, em menino, um cachorro independente, vagabundo da melhor estirpe. Esteve em minha casa por uns bons dez anos e nunca tomou banho. Se ouvia a palavra água, fugia’ (p. 95). Isso, sim, é arte”. E ainda me fiz de professor: “A crônica é como prostituta de calçada. Oferece-se ao mundo inteiro. Quem tiver dinheiro, aceitará o convite. Mais um passo, e cairá aos pés da vulgaridade”.
Desconfio de mim, quando evoco o nome de Simone Pessoa. O resenhista sorriu, malicioso: “Por que, seu Nilto?” Além de sermos amigos, a editora de sua seleta é a mesma dos meus aranzéis. Pois há outro catatau de minha autoria em fase de acabamento no Armazém da Cultura. O vovô se alegrou: “Então deixe comigo”. Deixei e ele se entusiasmou: “Metacrônica está aparentemente bonito...” Repliquei: “Está porque é. E não é só ele. Todos os impressos do Armazém têm boa aparência e acabamento gráfico de primeira”. Cleto se mostrou zangado, como se eu o tivesse advertido. Não tive pena dele e libertei todos os elogios guardados na gaveta.
Nas abas, ‘A Editora’ (será Albanisa Dummar?) fez observações capitais: referiu-se à linguagem de Simone (‘fluente, ágil, dotada da força da eletricidade e de uma mansidão rara’...) e dos assuntos por ela tratados: ‘tão variados e, paradoxalmente, tão semelhantes’. E fez outras ponderações: Simone é aquele ‘tipo raro de escritor – aquele capaz de ir em todas as direções possíveis sem jamais perder seu próprio rumo, sua própria voz’. Quem tem editora assim não precisa de editor, nem de prefaciador ou apresentador. Ousei completar o palpite: “A crônica não precisa ser leve à maneira de poeminha de menina nem se aproximar demasiadamente da anedota. E Simone consegue fugir dessa tentação. Lida com matérias diversas, atenta ao significado das palavras: ‘Sempre me encantei com o poder da palavra, sobretudo o da palavra escrita’”.
Ainda nos faltava reler o prefácio, minúsculo texto do gaúcho Paulo Bentancur. Então me atrevi a encerrar a tarde assim: “A linguagem de Simone é usual, de todos nós (exceto dos narcisistas radicais), sem afetação de literato metido a inovador ou revolucionário. Existem uns malucos preocupados com dedicar todo o tempo possível a arquitetar tramas verbais tão enigmáticas quanto a formação do Universo. Na opinião de Simone, o artista maior é a Natureza”.
O visitante arrumava papéis, canetas, óculos: “Acabou?” Quis vê-lo afobado: “Não, não acabei; ainda tenciono consagrar dez minutos ao...” Saltei do sofá, no afã de assustar o velhinho. Ou de me acordar. Pois, salvo engano, essas horas de leituras e discussões não passaram de sonho. Ou teremos sonhado ambos, eu e o escrevinhador, com Simone, suas peripécias verbais, seus modos peripatéticos de abordar os tópicos de abelha a zebra? Sei lá.
Fortaleza, 4/5 de dezembro de 2013.
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* Visite: Ceará Literário
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