I
A
revista Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea,
da Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB), em seu número
37, de janeiro a julho de 2011, traz um dossiê de 11 ensaios sobre Literaturas e outras linguagens, além de
três artigos que discutem obras do poeta Ricardo Domeneck e dos romancistas
Mário Sabino e Clarice Lispector (1920-1977) e a resenha de Fisiologia da solidão (plaquete) e do
livro Artes plásticas, de Ricardo
Lísias, assinada por Victor da Rosa, mestre em Teoria da Literatura pela
Universidade Federal de Santa Catarina.
Escritos por estudiosos de várias universidades brasileiras e também de Portugal, Estados Unidos e França, estes ensaios têm a uni-los a preocupação não só com a linguagem escrita, mas também com a visual, já que alguns deles abordam as ligações entre literatura, cinema, fotomontagens e quadrinhos (novela gráfica). É o que faz, por exemplo, Vera Lúcia Follain de Figueiredo, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro, em “Literatura e cinema: interseções”, ao mostrar como a expansão dos meios audiovisuais tem provocado alterações nas pautas de produção, consumo e valoração das obras literárias.
Já Pedro Galas Araújo, jornalista e mestrando em Literatura na UnB, em “Memórias fraturadas: passado, identidades e imaginação em Borges e Mutarelli”, lembra que as últimas décadas do século XX foram marcadas pelo que Andreas Huyssen, professor de Alemão e de Literatura Comparada na Universidade de Columbia, em Nova York, chamou de “cultura da memória”, ou seja, “uma valorização do passado como elemento que dá coerência a nossa própria experiência, em oposição a um presente fraturado em instantes, que não nos oferece nenhum vislumbre de um futuro promissor”.
Galas Araújo procura discutir essa questão a partir dos contos “O outro” e “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges (1899-1986), e da narrativa em quadrinhos A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal, do desenhista Lourenço Mutarelli. Em “O outro”, Borges narra o encontro entre ele mesmo, já velho, e sua versão mais jovem, estabelecendo o conflito entre o que planejou ser e o que lembra ter sido. Já Mutarelli faz aparecer na caixa do gato os brinquedos da infância, enterrados e perdidos quando ele era ainda criança, já há quase 40 anos, fato que passa a atuar como elemento catalisador de uma crise de identidade.
Galas Araújo questiona: “Em que medida eu posso falar de meu passado, se não me lembro de tudo e não me reconheço no que me lembro?” E observa que as duas narrativas trabalham sobre os desvãos de memória, discutindo em que medida a identidade do indivíduo se sustenta na lembrança para se projetar para o futuro, mas, ao mesmo tempo, problematizam essa memória como depositário de certezas.
Escritos por estudiosos de várias universidades brasileiras e também de Portugal, Estados Unidos e França, estes ensaios têm a uni-los a preocupação não só com a linguagem escrita, mas também com a visual, já que alguns deles abordam as ligações entre literatura, cinema, fotomontagens e quadrinhos (novela gráfica). É o que faz, por exemplo, Vera Lúcia Follain de Figueiredo, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro, em “Literatura e cinema: interseções”, ao mostrar como a expansão dos meios audiovisuais tem provocado alterações nas pautas de produção, consumo e valoração das obras literárias.
Já Pedro Galas Araújo, jornalista e mestrando em Literatura na UnB, em “Memórias fraturadas: passado, identidades e imaginação em Borges e Mutarelli”, lembra que as últimas décadas do século XX foram marcadas pelo que Andreas Huyssen, professor de Alemão e de Literatura Comparada na Universidade de Columbia, em Nova York, chamou de “cultura da memória”, ou seja, “uma valorização do passado como elemento que dá coerência a nossa própria experiência, em oposição a um presente fraturado em instantes, que não nos oferece nenhum vislumbre de um futuro promissor”.
Galas Araújo procura discutir essa questão a partir dos contos “O outro” e “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges (1899-1986), e da narrativa em quadrinhos A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal, do desenhista Lourenço Mutarelli. Em “O outro”, Borges narra o encontro entre ele mesmo, já velho, e sua versão mais jovem, estabelecendo o conflito entre o que planejou ser e o que lembra ter sido. Já Mutarelli faz aparecer na caixa do gato os brinquedos da infância, enterrados e perdidos quando ele era ainda criança, já há quase 40 anos, fato que passa a atuar como elemento catalisador de uma crise de identidade.
Galas Araújo questiona: “Em que medida eu posso falar de meu passado, se não me lembro de tudo e não me reconheço no que me lembro?” E observa que as duas narrativas trabalham sobre os desvãos de memória, discutindo em que medida a identidade do indivíduo se sustenta na lembrança para se projetar para o futuro, mas, ao mesmo tempo, problematizam essa memória como depositário de certezas.
II
Na mesma linha que procura vincular a mensagem escrita
com a visual, José Leonardo Tonus, professor de Literatura Brasileira da
Université de Paris-Sorbonne, na França, em “A Babel suspeita de Nelson de
Oliveira”, traça um paralelo entre as fotomontagens realizadas pela artista
plástica Tereza Yamashita e as narrativas da antologia Babel Babilônia, de Nelson de Oliveira, publicada em 2007. Para o
ensaísta, a presença das fotomontagens no livro sugere um enredo iconográfico
que, ao lado dos dispositivos paratextuais e do conjunto de 22 narrativas,
apóia uma reflexão sobre a crise de valores que atravessa a sociedade atual.
Exemplo
disso é a narrativa “Olho mágico: cidade dos sonhos” em que um narrador relata
as consequências nefastas da construção de um edifício numa cidade pequena do
interior de São Paulo. “Falo de São Paulo, paraíso e pesadelo. Falo dos bairros
sujos de São Paulo, das ruas violentas de São Paulo, do céu esfumaçado de São
Paulo. Pra ele e pra ela é como se falasse da cidade futura, da invasão do lixo
e da miséria, de viadutos rachados e vagabundos de outro planeta tentando
contato via rádio de pilha – estática, grupo de pagode, as putas da General
Osório sintonizadas nas altas do dólar (...). Falo da cidade que se aproxima
erguendo altas colunas de poeira, fazendo chover óleo diesel, monóxido de
carbono e ácido clorídico nas plantações de soja e cana-de-açúcar”, diz o narrador.
Em sintonia com o texto de Oliveira, as fotomontagens de Tereza Yamashita
mostram o “mundo em ruínas” das grandes cidades.
III
Por
seu lado, Idelber Avelar, professor titular de Literaturas Latino-americanas na
Tulane University, em New Orleans, Estados Unidos, no ensaio “Entre o
violoncelo e o cavaquinho: música e sujeito popular em Machado de Assis”,
aponta um ponto na obra de Machado de Assis (1839-1908) que nem mesmo leitores
especializados costumam pensar, ou seja, que na obra do escritor encontramos a
primeira reflexão sobre a onipresença social da música popular no Brasil.
Afinal,
como observa, a produção machadiana apresenta uma série de personagens ligados
com a criação ou a execução de música, desde o artista protegido pela Igreja,
como Mestre Romão, o regente e fracassado compositor do conto “Cantigas de
Esponsais”, o criador já inserido na profissionalização da emergente cultura de
massas, ainda que desconforme com ela, como Pestana, o bem-sucedido autor de
polcas do conto “Um homem célebre”, até o músico dividido entre a rabeca e o
violoncelo, como Inácio no conto “O machete”, passando pelo pobre que faz de
sua habilidade musical um passaporte para entrar e ser aceito em círculos de
classe média, como Barbosa, o artista popular de “O machete”.
Avelar
destaca também que Machado de Assis, como outros criadores de sua época, já
viviam a angústia de, por um lado, “sujar as mãos” nos jornais, onde ganhavam o
pão, e, por outro, escrever o verso imortal e eterno, possibilitado pela suja
escrita semanal por encomenda. E lembra um verso famoso do cubano José Martí
(1853-1895), contemporâneo de Machado de Assis, que dizia: Ganado tengo el pan/hágase el verso, observando que, por esses
versos, já se vislumbra a oposição que angustiava os escritores
semiprofissionais do século XIX.
(Se
se permite um acréscimo, é de lembrar que Camilo Castelo Branco (1825-1890),
contemporâneo de ambos, viveu exclusivamente dos cobres que conseguia com as colaborações que escrevia para os
jornais do Porto, ainda que tivesse de se sujeitar aos ditames da moda, em
prejuízo de seu talento. Já nos dias de hoje, mais de um século depois, nenhum
escritor pode viver – ou, ao menos, reforçar o orçamento mensal – de crônicas
ou artigos e muitos menos de folhetins (que já não existem) para jornais e
revistas simplesmente porque essas publicações já não pagam nada. Os jornais de
grande circulação, que ainda poderiam se dar a essa prática salutar, inclusive,
costumam preencher suas páginas de editoriais e comentários com artigos
preparados por luminares da universidade, que já se dão por satisfeitos com o
brilho dos seus nomes impressos).
Como
bem observa Avelar, são constantes, principalmente nos textos de Machado de
Assis publicados em jornais como A Semana
e o Diário do Rio de Janeiro, as referências ao mundo da música em vias de globalização e
em processo de profissionalização, contrastando com o mundo ainda amadorístico
da cultura letrada em que o poeta ou o intelectual de uma forma geral tinha de
ganhar a vida geralmente como funcionário público, como no caso do escritor
carioca e de outros tantos. De fato, as duas décadas em que Machado se
consolida como cronista, ou seja, entre 1860 e 1880, “coincidem com o período
de transição entre a polca abrasileirada e a emergência maldita, reprimida e
libertadora do maxixe”.
Por
aqui se tem uma amostra da excelente qualidade dos ensaios que compõem este
número 37 da revista Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea. Com certeza, não perderá viagem nem
tempo quem se dispuser a lê-lo.
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ESTUDOS DE LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS, publicação semestral do Grupo de Estudos em Literatura
Brasileira Contemporânea, da Pós-Graduação em Literatura da Universidade de
Brasília (UnB), nº 37, janeiro/julho de 2011/
Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 224 págs., R$ 36,00. E-mail:
contato@editorahorizonte.com.br Website: www.editorahorizonte.com.br
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(*) Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e
autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999;
São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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