A coletânea Mapas de viagem (Niterói: Alternativa, 2012) me foi
enviada por Alexandre Brandão. Brinde pré-natalino. São 14 dramas, ao todo,
dois de cada autor: o próprio Alexandre, Cristina Zarur, Marilena Moraes,
Miriam Mambrini, Nilma Lacerda, Sônia Peçanha e Vânia Osório. Os sete se
conheceram em 1991, numa oficina literária. E este é o terceiro volume
publicado pelo grupo.
Após a leitura das 14 peças, ofereci o livro a Cleto Milani, o mais devasso ancião do Benfica. Trocaríamos ideias. Ontem veio me visitar. E varamos a tarde a estudar os contos. Teríamos entrado pela noite, não fosse minha advertência: “Trinta minutos para cada autora, assim como para o autor”.
Após a leitura das 14 peças, ofereci o livro a Cleto Milani, o mais devasso ancião do Benfica. Trocaríamos ideias. Ontem veio me visitar. E varamos a tarde a estudar os contos. Teríamos entrado pela noite, não fosse minha advertência: “Trinta minutos para cada autora, assim como para o autor”.
O resenhista
se exaltou: “‘O anjo negro’ lembrou-me o filme Sei donne per l’assassino”.
Confesso minha ignorância: “Quando o senhor assistiu a essa fita?” Não perdeu a
quietude: “Marilena Moraes mostra o racismo em relação aos negros no Brasil.
Porém, conseguiu apenas engendrar uma história linear, de fundo moralista e
cristão. Isso se evidencia na pergunta de Alice, no desfecho: ‘Será que ele
não leu a Bíblia?’ (Aludia a padre Moreira, por seu ato de impedir a menina
negra Antônia de cantar, na igreja, ao lado de meninas brancas)”. Aproveitei a
deixa e alfinetei certas pessoas: “E ainda maldizem o realismo socialista”.
Chegamos a‘O
turista inconstante’, de Miriam Mambrini. Para o lascivo macróbio, “a viagem do
protagonista poderá agradar a leitores jovens e curiosos. Tem por assunto a
ilusão em duplo sentido: do leitor e do personagem. São oito páginas de
‘viagens’ (não se sabe de onde ‘partiu’). O narrador ‘desembarca’ em Ushuaia. E
prossegue por mares nunca dantes navegados. Aventuras de todos os tipos. No
epílogo, a graça da fantasia, com a revelação da verdade. Humor? Não importa.
Preferível um grito de raiva a uma risada. O viajante, então, desperta o
leitor: ‘O jantar será um frango grelhado’”. Tenho opinião idêntica à de meu
convidado. Nessa narrativa bem elaborada, Miriam Mambrini demonstra talento de
sobra.
Precisávamos
correr. Exigi do velhinho mais celeridade na exposição dos comentários. E ele
se pôs a gaguejar: “Nilma Lacerda é outra narradora vigorosa. ‘As linhas
frágeis’ tem a força das águas correntes. E puxam o leitor para o abismo”.
Gargalhei: “Deixe disso, Cleto. Não seja patético”. Sorriu e continuou: “É
interessantíssimo esse modelo de short
story: narrador conta estória, da qual também participa ou dela é
testemunha. Logo adiante, outro ser fictício assume o lugar de apresentador do
enredo. Aqui há uma narradora, em conversa com um homem (‘Não faça
cerimônia, é só falar que me calo). Inicia o drama no presente (‘Estamos
para entrar na barra, um pouco mais e o navio circunda o morro’ (...).
Tomei a
palavra, para não permanecer apenas como ouvinte: “O leitor é conduzido ao
terreno (no caso, ao convés da embarcação) da ilusão de uma viagem: ‘Tenho
fascínio por esses fachos de luz cortando a escuridão’ (...). Ou seja, são
dois episódios e dois narradores: uma no presente, outra no passado. E ambos se
acham frente a frente, num barco, nas proximidades da ilha Rasa”.
Se eu
deixasse, nossa conversa se estenderia por toda a tarde, entretidos com aquela
boa invenção. No entanto, precisávamos nos dedicar a outra. E dei a ordem:
“Analise a primeira composição de Sônia Peçanha. Não vá se alongar em demasia,
pois ainda teremos Cristina Zarur, meu amigo Alexandre Brandão e Vânia Osório”.
O ancião letrado se enervou. Tive medo de vê-lo estertorar no sofá e dar por
encerrada sua missão na Terra. “Contenha-se, homem. E dê logo a aula”.
O vovô
libertino se ajeitou no sofá: “Gosto de títulos em inglês, francês, italiano.
Admiro essa competência de nossos escritores. Você mesmo elaborou algumas
pérolas com nomes em outras línguas”. “É verdade”. E citei ‘Avisserger megatnoc’, ‘Basma xikga’,
‘Ecce homo sapiens’, ‘Jingle Bells’, ‘Lentus in umbra’, ‘Mea culpa’, ‘Mon
amour’, ‘Never more, ‘Urbi et orbi’ e ‘Vers sans rimes’”. O decrépito visitante interrompeu
minha fala: “Basta! Basta! Se deixar, você não para mais de se referir a si
mesmo, seu vaidoso”.
Aproveitei a
oportunidade, e me devotei à arte de Sônia: “Não avaliarei o enredo, que isso
fica para crítica de romance. Ficarei na linguagem e na estrutura. A contista
tem a sobriedade e a clareza dos bons escritores. Frases curtas (ou longas,
quando preciso) e objetivas arrastam o leitor para o durame da obra. Só um
exemplo: ‘E então o telefone toca. O cachorro do vizinho desata no latido
habitual. Ana, o garfo que enxuga, espetado no ar. Dani tem vontade de rir. Que
Ana parecia uma maestrina descabelada, regendo um coro de fantasmas’. Sem
precisar de explicações, a narradora vai da narração à descrição e ainda insere
falas, sem necessidade de aviso ao leitor, como se anunciasse: Agora fulano irá
se manifestar”.
Fiz nova
interrupção: “E onde você descobriu a origem do título?” Cleto não perdeu o
ritmo: “Lá pelo meio da intriga, após a chegada do pai de Daniel ao apartamento
onde se encontram... Bem, isso não interessa agora. O pai ‘coloca um CD e
aumenta o som’. Daniel gosta da música. O pai explica: Pink Floyd.
Mais alguns
minutos de atenção ao “Wish you were here” e logo chegamos à ficção de
Cristina Zarur. Tomei a palavra: “O ambiente descrito não se assemelha ao dos
apartamentos classe-média ou das casas pobres: ‘O corredor da casa era
comprido como uma avenida’. A protagonista se chama Memei, tem um fusquinha
e vive na mais cômoda rotina. O título virá disso: “O canto das pequenas
coisas”. Vivem na casa, além dela, o marido e os filhos jovens. Moram em cidade
da costa: ‘Um domingo ensolarado, bom para ir à praia’. Como em muitas
histórias de suspense e mistério, o leitor é conduzido, pelo narrador
onisciente, ao chamado estranho ou à fuga da rotina do personagem principal. E
logo se põe a imaginar aventuras. Ou desfecho trágico”.
O
escrevinhador de resenhas interrompeu minha fala: “Parece-me faltar algo, além
da camisola de Memei”. Sugeri café. O polemista do Benfica não gostou da ideia.
Achou-a ardente para aquela hora. Preferia suco gelado. “Graviola ou sapoti?”
Chamei minha secretária. Deitei o livro na mesinha. A moça apareceu, a se
rebolar aos olhos do ancião. Cantarolei uns versos antigos e enfiamos os olhos
nos copos. Saciados, voltamos ao artefato de papel.
Fui
categórico: “Agora você terá pela frente meu amigo Alexandre. Se, por acaso,
fizer papel de professor exigente, serei o seu censor”. Meu convidado sorriu:
“Não, não admito mais censura. Sofri na ditadura de Getúlio Vargas e na dos
militares de 64. Estou farto disso”. Sondou o infinito, calado, e voltou a
tagarelar: “Gosto também desses títulos extraídos do próprio texto: ‘André
seguiu adiante’. Está no final da trama. André é o segundo ator. O primeiro (o
narrador) não se identifica. Dirige carro por estrada e só pensa em Maria. O
outro não conhecia o motorista; pedira-lhe carona. E assim se narra um passeio,
sem aventuras (embora o veículo trafegasse em alta velocidade) e sem mistérios.
Ou haverá algum enigma em Maria ou no próprio André? Ao leitor resta ler e
reler. Ou apenas mudar de página”. Fiquei desconfiado: “Não gostou também
desse?” Meu comensal não deu resposta: “Vamos logo à última peça?”
E tomou a
palavra: “‘O coração do mapa’” terá sido escrito por Vânia Osório a partir do
título da seleta? É bem possível”. Fez uma pausa e atacou: “Outro conto
extremamente espichado, repleto de pessoas, com excesso de ações, tempo longo
demais, situações diversas. Salvará a estória, talvez, o mistério de
Felizberto, filho de Luís Bento e Tonha. Não há referência ao nome da cidade
onde moram. Possivelmente no sertão nordestino: ‘Li sobre a seca aí, que está
pior que nos outros anos’. Quase todos os filhos tinham ido embora para
longe, em busca de emprego ou vida melhor. Menos Gertrudes, ‘que era meio
ruim das ideias’. Pelo visto, mais uma tragédia de retirantes nordestinos”.
Irritei-me:
“Pelo visto, meu caro Cleto, os sete escritores cumpriram o compromisso de
elaborar relatos de viagem. Cada um com seu modo de narrar. E se saíram bem. O
impresso traz 14 momentos bem interessantes, espécie de passeio pelo Brasil”.
Íamos ainda
devassar o restante do opúsculo. Contemplei o céu e não vi mais claridade
solar. Sugeri a meu dileto êmulo outra tarde, durante a qual pudéssemos
concluir o trabalho. Fez ouvidos de mercador e se despediu, sem entusiasmo.
Fortaleza,
2/3 de dezembro de 2013.
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