Em seu exemplar prefácio a “Sésamo e os lírios”, Marcel Proust declara que um livro nunca pode
nos contar aquilo que desejamos, mas tão-somente despertar em nós o desejo de
saber, pois não é possível recebermos a sabedoria de outrem; é preciso criá-la
por nós mesmos.
Proust sugere que o valor da leitura, na
infância, não reside no livro em si mesmo [que no seu caso era “O Capitão Fracasso”, de Théophile Gautier]
e, sim, nas lembranças inconscientemente conservadas nele, de tal forma valiosas
para nosso julgamento atual que, se por acaso, voltamos hoje às mesmas páginas,
não é só porque elas representam o único calendário que sobrevive dos dias
desaparecidos.
Durante toda a sua vida, Proust sentiu-se
encantado pelo livro de Gautier, que manejado por seu talento, ganhou um novo
titulo [“Francisco o Bastardo”] e um
novo autor [George Sand], tantas vezes citado, especialmente no volume “O Caminho de Swann”, que integra os sete
volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”.
Ao contrário de Ruskin, engrandecido na tradução
e no prefácio de “Sésamo...”, Proust
acreditava que a solidão da leitura conservava a energia mental que em geral se
dispersa numa conversa. Grande conversador, dotado do que Baudelaire chamaria
de “a arte do feiticeiro”, Proust achava a conversa perda de tempo para o
escritor que se dispõe a escrever com seriedade e eficácia.
O significado secreto do prefácio proustiano
pode ser atribuído ao reconhecimento de que, ao contrário da leitura, a
conversa se torna perigosa quando deixa de ser um estímulo e passa a ser um
mero substitutivo.
É justamente nesse prefácio que Proust proclama
a sua emancipação de Ruskin e de todos os demais escritores que admira, porque
a partir daquele momento ele começava, de fato, a escrever o seu romance-rio
tantas vezes protelado.
Em 1904, Proust se recusa a fazer uma nova
tradução de Ruskin, informa-nos o minucioso Painter, seu biógrafo inglês,
porque achava que se aceitasse a encomenda feita por um editor de Veneza, não
poderia dedicar-se a escrever a sua própria obra.
Como Proust, Ruskin tem uma escritura
aparentemente desordenada, repleta de digressões e recorrências polifônicas
mais frequentes na música do que na literatura; ambas passam de uma ideia para
outra, sem pausa, mas há no esteta inglês e no francês, afinidades profundas
que impõem à obra – mesmo que ela não queira –, uma lógica misteriosa. Proust
compreendeu que há sempre na vida de um grande escritor um momento em que ele,
para o bem de sua obra futura, deve deixar de admirar mesmo os seus mestres.
Proust perseguiu uma unidade majestosa, capaz de
sustentar a diversidade da sua obra; e, ainda segundo Painter, uma conclusão
que retomasse, em forma de coda ou de fuga, todos os temas suscitados por sua
memória involuntária, deflagrada ao saborear a madeleine encharcada no chá de
tília, ou, num episódio igualmente marcante mas pouco referido por seus
estudiosos, pela lembrança dos sinos da igreja de Martinville, tantas vezes
visto na companhia do doutor Percepied.
Daí a natureza polifônica do seu livro,
construído como uma catedral gótica, para durar, ampliando-se em círculos
concêntricos a cada leitura, como uma representação mais ampla e misteriosa dos
sete céus superpostos prefigurados na essência budista.
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