Eu
acreditava que o Google poderia encontrar qualquer informação sobre qualquer
pessoa, em qualquer tempo ou lugar. Mas descobri que um vasto território do
mundo real ainda não havia caído em seus tentáculos. O poderoso mecanismo de busca,
aha, não era infalível como se pensava. O que me levou a esta conclusão foi a
necessidade que tive de me reconectar com alguém do passado, uma mulher de
outro país que conheci quando tinha 18 anos.
Minha relação com M terminara, e eu me sentia impelido a buscar no passado as razões do meu fracasso. É como se eu precisasse reaprender a andar, depois de vinte anos ao lado da mesma companhia, e isto eu só poderia conseguir olhando para trás. Era o que eu pensava.
Só
o desespero e o desamparo podiam justificar o fato de eu ir atrás de um
fantasma, e um fantasma, além de tudo, alemão.
Nadja
era da região do Ruhr, que, vim a saber depois, foi muito castigada pelos
bombardeios aliados durante a Segunda Guerra. Era uma moça alta e de olhos
bastante azuis, que excursionava pelo Brasil com um grupo de música
infanto-juvenil. Vieram parar neste fim de mundo, e tenho a lembrança vívida de
estarmos conversando numa noite, depois da apresentação, quando todos tentaram
se aproximar daquele grupo exótico que falava uma língua impenetrável.
Para
mim, alemães eram símbolos claros de guerra e de nazismo. Mas meu contato com
Nadja desfez qualquer impressão negativa que eu carregava do seu povo e de sua
história. Aquela moça tão bonita aos 16 não poderia ser confundida com uma
insigne representante de Hitler.
Nadja.
Claudiquei
nos meus escassos conhecimentos de inglês, mas nos entendemos muito bem. Não é
preciso muito mais que isso quando se tem 16, 18 anos. Apesar do assédio das
pessoas, monopolizei sua atenção. Talvez pelo simples fato de que somente eu
ali fui capaz de estabelecer uma comunicação, básica que fosse. Uma noite
apenas. Mas que sustentou uma amizade que se prolongou durante anos. Entre nós,
a esperança de que um dia iríamos cruzar o oceano e nos reencontrar.
Tente
falar rapidamente a seguinte palavra:
Geburtstagsglückwünsche
Posso
pronunciá-la sem dificuldade, mesmo decorridos tantos anos. É assim que os
alemães expressam os votos de feliz aniversário. Esse foi um dos esforços que
fiz pela amizade de Nadja. Estudei o idioma.
Guten
tag. Gute nacht.
Wie geht´s?
Coisinhas
básicas, das quais ainda me lembro. Um dia fui ver um filme sobre o grupo
Baader-Meinhof. Constatei que meu vocabulário ainda estava lá, intacto.
Lembrei-me de Nadja e de minha busca infrutífera no Google, quando me separei
de M.
Google?
Aha. Imagine que tentei todas as combinações possíveis. E o resultado que
retornava era um turbilhão de informações tão vagas quanto inúteis. Descobri
que os Kopfkrank, nome de família de Nadja, são tão numerosos quanto toda a
população da China. Havia centenas, milhares deles não apenas na região do
Ruhr, mas em cidades dos Estados Unidos, da França, da Holanda e até da
Espanha. É possível existirem membros da família Kopfkrank até na Groenlândia.
Num
momento de loucura, cogitei enviar um e-mail para a embaixada alemã, contando
uma longa mentira e pedindo que achassem Nadja. Ninguém pode se evaporar assim.
Não passava por minha cabeça que ela podia ter casado e mudado de nome, ou até
morrido. Como eu jamais conhecera qualquer membro de sua família – tudo que
sabia é que tinha um irmão –, não tinha meios de ser avisado.
Nadja
morta. Nadja ist tot. A possibilidade
me dava calafrios. Eu tentava me livrar do fantasma de M indo à procura de um
outro fantasma. Sim, Nadja podia estar morta, mesmo sendo uma mulher saudável.
Mas o que estou afirmando? Havia vinte anos eu não a via, como poderia ter
certeza de que permanecia saudável e bonita, como a conheci?
Tão
imerso estava em minha obsessão, que não me dava conta de um fato. O que dizer
a Nadja, caso eu a reencontrasse. Quantos amigos procuram outros amigos tão
obstinadamente, tanto tempo depois, sem despertar um grão de desconfiança de
que as coisas não estavam indo bem? Que o que esse amigo queria, de fato, era
uma tábua de salvação?
É
como se eu fosse um desses personagens russos dentro de uma cena lúgubre, num
minúsculo apartamento em São Petersburgo. Todos os amigos estão mortos. Todos
os familiares foram incinerados num campo de concentração. E agora esse
personagem, diante do fim iminente, relembra o passado, contemplando as poucas
fotos que lhe restaram, as pequenas anotações às margens de livros amarelados e
aos pedaços, tentando recriar um vínculo com o passado. Mas tudo que lhe
restava era o frio intenso, as dores no corpo provocadas pela idade e a chuva
gelada tamborilando do lado de fora da janela.
Para
mim, existe um indescritível fascínio nos casos de pessoas que desaparecem, sem
deixar rastros. É como se elas tivessem sido abduzidas por extraterrestres. Mas
o que acredito mesmo é que se cansaram de tudo e, um belo dia, foram embora,
para viver uma nova vida em outro lugar, com outro nome e quem sabe até
disfarçada como se fosse uma pessoa completamente diferente.
Georges
Simenon, o romancista francês, imaginou uma história assim, que muito me
fascinou à época em que a li. Um sujeito entediado com a família deixou tudo
para trás e foi viver uma vida incógnita em Paris. O livro é O homem que via o trem passar.
Se
eu penso nele agora, é porque havia em seu gesto um clamor de liberdade que me
impressionou. Porém, a fuga revelava uma mensagem dúbia. Você podia ver nela
tanto um ato extremo de liberdade quanto de loucura.
Depois
desse livro, liberdade e loucura ficaram indissociavelmente ligados em minha
mente.
Quantas
vezes pensei em abandonar M e, como aquele personagem inspirador de Simenon,
sumir e deixar tudo para trás. Mas foi M quem me abandonou primeiro. A ironia é
que agora que estava sozinho me sentia oprimido pela liberdade e pela perspectiva
de seu imenso abismo.
O
muro. Der Mauer. Um dia telefonei
para Nadja e ela estava radiante. “O muro”, ela gritava, “o muro, o mundo
inteiro está falando dele!”. O muro de Berlim havia caído, e é como se as
fronteiras do mundo tivessem sido abertas em definitivo. Meu ânimo de cruzar o
oceano e ir reencontrar Nadja se reacendeu como nunca.
Mas
nas cartas que ela me mandaria depois, ficava claro que a nova liberdade vivida
pelos alemães tinha um preço. A reunificação não ocorrera de forma tão pacífica
como se imaginou no início. Alemães de ambos os lados agora se olhavam com
desconfiança e até hostilidade. Muitos anos depois é que fui entender aquela
situação que Nadja tentava explicar em suas longas cartas, escritas com caneta
azul e em letras irregulares, estranhamente pouco elegantes para uma moça tão
bonita.
Na
última carta que recebi de Nadja ela dizia que estava morando em Düsseldorf.
Nessa época, eu já estava casado com M. A correspondência com Nadja minguara
até cessar de vez. Mergulhei na minha vida com M, tivemos filhos. Não percebi
que tinha perdido uma amiga.
O
Google continua sem localizar minhas buscas por Nadja. Aha. Já esgotei todas as
combinações possíveis. Não há mais o que tentar. Também não quero me tornar um
personagem russo. São Petersburgo é muito fria, e eu não a suportaria. Vou
agora mesmo telefonar para M. Podemos sair para dar uma volta, ir ao cinema e
falar das crianças.
/////