Em
festa literária conheci Janete Clair. Não, não se trata da telenovelista da
Rede Globo, falecida em 1983. Aliás, o Janete Clair famoso surgiu em
substituição ao extenso Ginette Stocco Emmer Dias Gomes, originalmente sem os
dois últimos sobrenomes. Explico isto com o fito de afastar o leitor da ilusão
de estar diante de história há muito passada. Na verdade, esta é de agora
(2013) e a personagem tem apenas 21 anos de idade. Nascida, portanto, nove anos
depois da morte da ficcionista mineira.
Perguntou
(em pleno burburinho da festa) se eu poderia lhe conceder a glória de ser
fotografada ao meu lado. E sacou da bolsa câmera de cor rosa. Senti-me como
astro de televisão, “artista” famoso. E até sonhei com assédios de paparazzi e mocinhas histéricas. Gostei
dela, do sorriso de fã, da vontade de me conhecer de perto. “Li dois livros
seus, professor”. Convidei-a, então, a ir à minha casa. Quando? Agora, se você
quiser. Talvez depois de amanhã. Poderia ser domingo? Chegamos a acordo: sábado
seguinte, à tarde.
Passei
os dias imediatamente anteriores àquele sábado a arrumar a casa (a faxineira se
encarregou de dar toque feminino ao ambiente). Arranjei edição antiga de Paul
Verlaine. Deveria estar aberto sobre estante baixa, bem visível a quem entrasse
na casa. Por quê? Não sei onde consegui arranjar tão extravagante ideia. Tentei
decorar, pelo menos, uma peça curta. Não passei dos primeiros versos de “Tableau populaire”: “L'apprenti point trop maigrelet, quinze ans,
pas beau, / Gentil dans sa rudesse un peu molle, la peau / Mate, œil vif et
creux, sort de sa cotte bleue” (...)
No
entanto, tudo em vão. Cinco minutos antes da chegada de Janete ao meu château, inexplicável rajada de vento
fechou meu velho Paul e desarrumou minha alma. Boa tarde, professor.
Sentados
no sofá ridículo, mãos trêmulas, esquecido até do meu francês adolescente (J’aime, tu aimes, il/elle aime),
sacudiu-me a pergunta nunca esperada: “Quem é escritor, Nilto?” Na pressa, só
consegui esta definição: “É quem escreve”. Ela sorriu: “Não deixa de ser
verdade. Assim como quem canta é cantor, quem pinta é pintor”.
Veio-me
à mente história do tempo de Janete Clair, a telenovelista. Naquela ocasião,
existiam no Brasil sindicatos de escritores. Na cidade onde me achava, inventei
de conhecer o lugar onde se reuniam os tais escribas. Sentei-me bem distante da
mesa, na última carreira de cadeiras. Tencionava me inteirar da funcionalidade
daquela entidade. Debatiam reforma dos estatutos. Acomodei-me timidamente em
cadeira, ao fundo. Rapazelho barbudo e risonho pediu a palavra: Desejava saber
primeiro qual o dever ou quais os deveres do homem de letras. Senti-me
encorajado e também me manifestei: “Logicamente o primeiro deles é escrever.
Não simplesmente rabiscar frases, mas deslizar pelo papel feito serpente”.
Jovem sentiu cheiro de mistério no ar: “Não entendi nada”.
A
assembleia se mostrava dividida em grupinhos. Para uns, o candidato só seria
aprovado se comprovasse a autoria de poemas, contos ou romances. Indivíduos
extremamente cabeludos viam naquilo exigência sem pé nem cabeça. E se o sujeito
escrevesse memórias, crônicas, artigos, ensaios? Engalfinharam-se os adeptos
das duas tendências e eu pensei em me retirar, feito rato ao ouvir o primeiro
passo na cozinha.
Janete
Clair se entusiasmou e, quando cuidei, parecia tão próxima de mim quanto minhas
vontades de sátiro em plena tentação. “O senhor devia ter sido categórico”.
Membro
da ala dos mais exigentes propôs abrandamento na definição: Livro não precisava
ser qualificado. Pouco importava se fosse de piadas ou romance enigmático, de
autoajuda ou poemas herméticos, composto de frases feitas ou de invencionices
indecifráveis.
Consideraram-no
revisionista, reformista e traidor. Alguém se pôs a gritar: “Para ser escritor
não basta saber escrever; precisa redigir com originalidade ou elegância”.
Amigos do primeiro se levantaram e quiseram dar por aprovada a sugestão por ele
apresentada. Houve reação. Trocaram insultos de todos os tipos: Vá tomar... Vá
para a... Seu filho de...
Acalmavam-se
os ânimos, quando certo rapaz apresentou proposição controversa: Livro não
precisava ser editado, impresso. Valeria a palavra do autor. Seria suficiente
declaração de próprio punho: “Declaro-me escritor”.
Houve
reação imediata: Não, assim não. A pessoa precisava apresentar cópia da obra
(podia ser em letra manuscrita ou datilografada – nesse tempo ainda não existia
computador no Brasil, pelo menos em uso comum nas residências ou mesmo nos
órgãos públicos federais), e, assim, provar a sua condição de autor de livro.
Zangou-se homem com aparência de doutor em filosofia: Ora, seria duvidar da
palavra de literato. E isso lhe parecia inadmissível.
Nesse
momento, retirei-me, disposto a nunca mais comparecer a reuniões desse tipo.
Não pude, no entanto, ser fiel a mim mesmo, e, mês depois, lá me encontrava
novamente em cadeira da última fila, no salão do sindicato. E sabe qual o teor
da contenda?
Janete
Clair tomou susto e pediu água. Dirigi-me à sala de entrada, agarrei o livro de
Verlaine e li: “Votre âme est un paysage
choisi / Que vont charmant masques et bergamasques / Jouant du luth et dansant
et quase / Tristes sous leurs déguisements fantasques”. Janete quis saber o
significado de “bergamasques”.
Encontrei esta tradução da estrofe: “Tua
alma é uma paisagem de outros dias / Por onde, ao som de alaúdes, vão passando,
/ Quase tristes nas suas fantasias, / Bergamascos e máscaras dançando”.
Sabem
vocês o motivo da discussão dos sindicalistas? Descabelado estudante de artes
cênicas propunha greve geral da categoria. Precisavam forçar o governo a
decretar... Não, não consigo me recordar de detalhes. Janete me cutucou: “Tente
se lembrar”. Fazia tanto tempo. A novela das oito naquele tempo se intitulava
“O astro”. Não, estou enganado. Talvez se tratasse de “Coração alado”. Sim, a
voz de Fagner enchia as casas do Brasil: “Nessa
estrada só quem pode me seguir sou eu. Sou eu, sou eu, sou eu”.
Se não
me engano, a greve se daria com o objetivo de forçar as editoras a pagarem
corretamente os direitos autorais. Então o salão pegou fogo. Subi ao tablado.
Como fazer tanta exigência, se apenas 1% (e olhem lá, se chegar a tanto) dos
autores brasileiros assina contrato com editoras?
A jovem
Janete Clair (coitada, não sabe quem é Paul Verlaine nem Claude Debussy e nunca
ouviu Clair de Lune) quis saber como
terminou a reunião. Corri na direção do bar da esquina e me escondi atrás da
mais suja pilastra.
Fortaleza,
13 de dezembro de 2013.
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