(Cleto se recompôs e eu voltei a brilhar
na sala.)
Esta segunda parte da
crônica, dedicada a alguns impressos recebidos em janeiro de 2014, nasceu na
mesma tarde da conversa com Cleto Milani, na qual comentamos Anderson Braga
Horta e diversos malabaristas da palavra.
Ia tarde pelo fim, e
ainda restavam dois objetos sobre a mesinha. Apressei o passo (ou a língua) e
me entreguei à tagarelice. “Anote tudo no caderninho, como tenho procedido
quando você se manifesta”. E o vovô se enervou. Tivesse calma. Eu me
expressaria com clareza e sem pressa. E dei início à prédica:
“Inventário de desimportâncias, coletânea do grupo O Bodoque, é composto de narrativas. Assim está anotado na ficha técnica. Os autores são Cecília Cassal, Cláudio B. Carlos, Cleber Pacheco, Fábio de Souza e Gladstone Machado de Menezes. O segundo é o coordenador editorial do grupo e eu o conheço há alguns escritos. O terceiro também não me é desconhecido, além de ser ‘autor’ de publicação mencionada nesta tarde. A moça eu a desconheço, sobretudo por ser inédita e morar no extremo sul do Brasil. Mostra um jeito próprio de escrever, embora muito próximo do coloquial. Além disso, aderiu à onda do continho curto, do flash. Ou nem tanto, pois ‘Volúpia’, de quatro páginas, começa como um sonho esquisito: ‘Nesta casa tem pedaços de coral e tem elefante que um dia agarrou nas vestes e hoje prende-se nas cortinas’. Não é uma simples contista ou narradora de histórias. Tem imaginação vigorosa e sabe lidar com as palavras, as frases”.
Disse muito mais (porém,
não há espaço para tudo) e passei aos contos do segundo: “Claúdio B. Carlos
(meu conhecido de longas datas). Diz-se ‘poeta da nulidade, filósofo do nada e
editor de livros marginais’. Seus continhos esquadrinhei há alguns anos e por
eles quase me petrifiquei, qual sapo na lagoa, galinha no terreiro e gente na
beira da vida. Há uma delícia de narração em ‘O círculo’: ‘Foi num junho que
decidi que não gostava mais do meu pai. Dos perdigotos e arrotos à mesa. Da
cara e das mãos de ferro fechadas – acho que as mãos de ferro do meu pai
estavam enferrujadas, pois nunca se abriam para afagos’. Esse é escritor em
qualquer sentido, indo e voltando”.
Impus uma pausa maior,
andei pela sala (tencionava dar uma espiada nos garranchos do macróbio) e
voltei à minha cadeira de balanço.
“Cleber
Pacheco comparece com várias estórias de feitio inusitado. Em ‘Identidade’,
tudo é estanho, diferente da maioria das novas seleções de prosa de ficção, bem
como em sites. Não pela linguagem, comum, sem muitos atavios. Nem pelos temas
em voga das histórias de crime, a vida no morro, na periferia, o mundo da
pobreza urbana, as gírias, os grupinhos, a violência gratuita. Nas peças
capsulares de Cleber transitam personagens pelo espaço dos excluídos, dos
diferentes, dos chamados loucos. Como se vê em ‘Aqui’ e ‘O espelho’. Estranhos
acontecimentos? Não, nada de extraordinário acontecia. ‘Tratava-se muito mais
de um desacontecimento do que de um acontecido’ (p. 85). Um sujeito passava
todo dia pela mesma rua e nada acontecia de anormal ou incomum. Tudo repetido.
No entanto, um dia ele parou e paralisado ficou”.
O
conviva se aborrecia com meu falatório. “Não pretende me dar a palavra agora?”
Tranquilizei-o: “Talvez no próximo sábado, meu irmão”. E voltei a lecionar:
“Fábio de Souza engendra
relatos comprimidos, em discurso despojado, quase coloquial. ‘Lá pelas tantas,
quando nos calamos...’ (p. 99). Os nomes dos personagens nem sequer são
mencionados. O narrador (escondido atrás da narração) se refere a outro
personagem, sempre a chamá-lo de ‘ele’. A narração (fluxo da consciência?) às
vezes se dá aos borbotões e em completa desordem: ‘Debruçou-se sobre o corpo
ainda febril, a sombra leitosa de sua já quase cegueira consumindo o rosto que
penava para não esquecer, o gozo veio em seguida, extenuado, como se aplacando
o breve instante apenas em que penetrava a carne enferma da mulher e desejava
falecer ali mesmo’ (...). É de sufocar o leitor”.
Interrompi minha
exposição, no intuito de esticar os músculos das pernas, e caminhei em busca da
porta. O ancião terá desconfiado de minhas intenções, pois levou o caderno ao
peito. Sem abrir a boca, chamei-o de ‘bode velho’ e me pus a bradar:
“Gladstone Machado de
Menezes é igualmente cultor da alegoria sem enredo e sem personagem em perfeito
delineamento (nunca se sabe quem narra e a quem este se refere). Como se fossem
falas soltas ou extraídas de diálogos de romances ou contos longos. Tudo começa
de repente e sem explicação ou sem começo. Tudo começa no meio ou no fim. Como
em ‘O celular’, cujas primeiras frases são: ‘O celular estava na bolsa. No
banco do passageiro’ (...). Esse modelo, no entanto, não é novo. Nas letras de
canções ‘antigas’ os melhores compositores usavam essa técnica. Como em
‘Loucura’, de Lupicínio Rodrigues, assim começado: ‘E aí eu comecei a cometer
loucuras’ (...)”.
Depois de alguns minutos
em silêncio (o sátiro do Benfica cochilava ou fingia serenidade), dei um grito
medonho: O APRENDIZ. O bichinho tremeu todo (ainda mato o coitado de susto) e
eu me deixei gargalhar, sadicamente. Acanhado (a gente se envergonha de ser
frágil, minúsculo, miserável e humano), Cleto se recompôs e eu voltei a brilhar
na sala:
“O aprendiz de poeta, de Cláudio B. Carlos, é livrinho de criança,
principalmente as de vinte a quarenta anos de idade. As ilustrações de Fredy
Varela lembram tempos antigos, de crianças a chupar picolé e adultos de olho em
pipas no ar. A dicção de Cláudio não é infantil ou infantiloide. O personagem
principal é Fernando e não Chico Pançudo ou Toquinho de Amarrar Onça: ... ‘vez
em quando, após uma fungada, passava as costas da mão no nariz’. Nos diálogos,
o leitor brasileiro (exceto o sulista) poderá encontrar alguma dificuldade,
ante o tratamento usado pelo menino Nando e o versista Abel. Como na pergunta:
‘Abel, tu não anotas os poemas que tu crias?’ As crianças brasileiras, na sua
maioria, fariam a pergunta assim: ‘Abel, você não anota os versos em papel?’ A
presença da poesia de Manuel Bandeira e Fernando Pessoa na trama de O aprendiz de poeta poderá dar noção de
pedantismo do gaúcho. Com a escola de hoje e essa mania dos educadores de se
servirem apenas do jargão ditado pela televisão e pelo sociologismo moralista
(aquele dos professores e doutores analfabetos, repletos de preconceitos tão
nocivos quanto os que querem combater, e segundo os quais Monteiro Lobato é um
mal), o opúsculo de Claúdio poderá terminar encalhado, se não for tachado de
‘fora da realidade’”.
Chegava a tarde ao fim.
Eu me sentia exaurido e quase faminto. Convidei meu amigo a se retirar e lhe
ofereci nove tomos recém-chegados.
Ao vê-lo capengar no rumo do portão, pensei cá comigo: Ainda o verei morto, de tanto ler.
Fortaleza, 24/26 de janeiro de 2014.
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