(Quadro de Eustache Le Sueur)
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Impaciente,
corri três vezes até o portão. Na quarta, quando ia encostar a venta no
alumínio e vasculhar a rua, avistei aquela carinha linda do lado de fora. Para
não demonstrar ansiedade, deixei-a acionar a campainha duas vezes. E, então,
como se acabasse de me aproximar do portão, gritei: Já vai. Quem é? Sou eu. Eu
quem? Janete. Meti a chave na fechadura, puxei a folha com chave e tudo e abri
os braços. Desculpasse o suor: acabara de chegar do shopping. Ela me deu abraço
muito sutil e entramos na casa, a mentir pelos poros.
Depois de
cinco minutos nessa lengalenga, iniciamos a aula. Peguei Ar de arestas (São Paulo: Escrituras, 2013), de
Iacyr Anderson Freitas, e me pus a tagarelar: Tenho acompanhado a trajetória
literária (ou editorial) de Iacyr, desde os vagidos iniciais. Não me lembro do
primeiro contato. Terá sido em 1982, ano de publicação de Verso e palavra? Recentemente
(dezembro de 2010) referi-me a ele no artigo “A obra poética de Iacyr Anderson Freitas”.
A mocinha
examinava minha euforia: O senhor
tem demonstrado admiração por ele. Concordo com suas palavras.
Pedi
silêncio e me entreguei à parolagem: Em Ar
de arestas verifiquei umas
singularidades (não fosse o impresso agradável aos olhos e ao tato, pela capa
dura, pelas fotografias de Ozias Filho, pelo tipo do papel e pelo formato menos
comum): o poema (ou são vários?) é constituído apenas de quartetos, em rimas
alternadas, quase todas dos tipos “ricas”, “agudas” e “graves”. O metro é
sempre o de sete sílabas, a chamada redondilha maior. Janete Clair me fez
calar: Será mesmo importante referir-se a isso? Possivelmente não. Entretanto,
sempre é tempo de lembrar certas normas aos jovens. O senhor vê em Iacyr pura
imitação de Drummond? Não, talvez nem se aproximem um do outro. Vejo mais
semelhanças com João Cabral.
Reli alguns
cantos em voz alta. Impus breve pausa e ela se aproveitou disso: Ele se refere
às arestas da poesia? Pediu o objeto e se pôs a ler: ‘Surpreende-se a serpente
/ em cada naco de frase. / Ora, vagando, urgente, / ora fixa em sua base’. Li
estas linhas e fiquei com a pulga atrás da orelha. A serpente seria o quê? Até
me lembrei de Jorge de Lima.
Pego de
surpresa pela astúcia (pode-se falar em inteligência?) da menina, tentei
parecer mestre: Tudo é possível captar nos livros. Solicitei o volume e
lecionei: Como na pintura abstrata. Na verdade, pressenti antes de tudo a dor
humana cantada e chorada: ‘um vazio de nascença’, ‘ter por dentro essa falta’,
‘em si mesmo soterrado’.
Senti
necessidade de passear ao redor de mim mesmo. Ao voltar ao sofá, ela disparou:
É de alto nível? Não titubeei: Sim, de alto nível, embora o leitor menos
experiente também possa alcançar o seu significado. Janete queria me irritar
mesmo: Então o analfabeto não pode ler boa poesia? Ou a frase informal não tem
qualidade? Deixe de preconceito, professor. Quase tive ataque apoplético:
Acalme-se, jovem. Nunca me senti próximo do entendimento segundo o qual poesia
de alto nível seja aquela entendida apenas pelos homens letrados ou
intelectuais. Na verdade, nem pintura nem música carecem de entendimento. Basta
senti-las. Porém, não restam dúvidas: há uma arte cerebral e outra dos
sentidos. Às vezes, se confundem, são a mesma coisa. Música clássica é assim.
Minha
secretária apareceu. Entendi ter chegado a hora de dar trabalho à garganta.
Vamos tomar suco, Janete? À mesa, dedicamo-nos apenas a trivialidades: doce de
mamão, chuva por vir, calor de trinta graus. E comemos e bebemos feito dois
irmãos.
De novo
acomodado no sofá, agarrei Bazar
do Braz: Poemas & Anzóis (Goiânia:
Kelps, 2012). Dediquei-me a manifestar admiração pela figura humana e pelo
escritor Valdivino Braz. Conheço este poeta há quase meio século. Antes mesmo
de me ir pra Brasília, já me correspondia com ele. Entretanto, só estivemos
frente a frente em 1978, não sei se na capital do país, se na de Goiás. Foram
abraços, cervejas, risadas, publicações. Janete me interrompeu algumas vezes: E
continua essa amizade? Sim. Vez por outra, trocamos cartas, como antigamente.
Os livros ainda circulam pelos ares.
Iniciei
breve apresentação do Bazar.
A moça quis saber minha opinião: Parece brincadeira? Sim, é galhofa pura.
Valdivino é sujeito alegre, expansivo, como se dizia. Fala alto e grosso,
irradia luz, embora seja pequenino e magro. Ultrapassei cinco minutos em elogio
ardente ao poeta goiano, até ouvir reclamação: Não vai comentar o conteúdo?
Sorri: O subtítulo dá início aos gracejos: ‘poemas & anzóis’. Pensei em
pesca de pessoas. A sapeca opinou de novo: Quiçá não dê um passo além do humor.
Não, ele nos leva a pensar e conversar. Não tem aquela seriedade ou sisudez de
Iacyr. Também não se torna carnavalesco. Como em “Casa do Mané”, homenagem a
Manoel Coutinho Carneiro, natural de Piripiri, Piauí, dono de casa de pasto
(misto de bar e restaurante), no qual se oferecem, aos clientes, “típicos
petiscos e pratos / de estilo caseiro, / tempero com esmero”. A menina é
sabida: Lembra os repentistas. Corrigi-a: Não na medida do verso e na rima
soante. A danada não se deixou abalar: Há nele textos em prosa muito
debochados, na esteira do modernismo de 22, especialmente Oswald. Aproveitei a
deixa: Tudo misturado, como convém ao modernista exemplar. A garota completou:
Valdivino zomba dos tipos urbanos, em descrições minuciosas, caricaturas dignas
de Gregório de Matos.
Deixei-a a
resmungar e iniciei passeio pelos corredores. Sempre ajo assim, quando me sinto
incomodado por visitas. De regresso à sala, vinha com a ideia de ler duas ou
mais composições de meu amigo. Agora permaneça caladinha e ouça: “Um poliglota,
o Hipólito. O hipopótamo. Cheio de línguas. Latim. Grego. Um esnobe. Uma íngua.
Um chato de galocha. Etílicos, inchados, os olhos-bulbos. Um sábio com a boca
cheia de vocábulos. Por mares nunca dantes navegados. Hipólito Sanchez, a
pança. Ordenança de Quixote, citando Oscar Wilde: ‘Toda arte é absolutamente
inútil’. Dose pra elefante”.
A estudante
não me deixou ir adiante: Isso é poesia? E se for apenas inutilidade?
Assustei-me. Tivesse cuidado com a língua. O senhor agora tem cara e modos de
pastor evangélico.
Fortaleza,
17/18 de fevereiro de 2014.
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