Ao
dizer ‘beijos, Tusa’ e desligar o telefone, ouvi a campainha do portão. Acabara
de conversar com Aretusa, a mais nova de minhas herdeiras. Na azáfama dessa
vida de muitas filhas (reais) e milhares de fãs (imaginárias), recebi clarão
súbito no cérebro: Só poderia ser Janete Clair. Corri (sem me preocupar com a
vestimenta, pois me habituei a permanecer só de cueca em casa) e, sem prestar
atenção ao mundo ao meu redor, bati a unha encravada num pé de cadeira, quis
chorar e mandei o objeto para a puta que o pariu. A capengar e suar sangue, dei
à pobre aluna a pior das recepções de sua vida. (Só então me percebi vestido da
cintura até os pés). Depois de explicações mentirosas de minha condição física
e emocional, dei início à aula.
Como
combinamos, trataremos hoje de dois impressos: Terra de demônios (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013), de Márcio
Catunda; e Redemoinho (Goiânia:
FUNAPE, 2012), de Valdivino Braz. Sou amigo de Márcio desde os tempos da Jovem
Guarda. Estou a brincar. Conhecemo-nos do tempo de O saco (1976) ou logo depois (Siriará, 1979). A moça brincou
(começa a ficar engraçadinha demais para o meu gosto): E ainda se amam? Não,
nunca nos amamos. Não fomos além de abraços e troca de livros. Percebeu minha
cara de mau diante da pergunta anterior e mudou o teor da conversa: Ele pode
ser posto ao lado dos bons? Quando me refiro a ficcionistas (da prosa e do
verso), nunca uso adjetivos qualificativos. Porque nem eles nem os personagens
são totalmente maus ou bons.
A visita
folheava Terra de demônios: Essa capa
é apavorante, com esse vermelho a lembrar o Inferno. Aborreci-me: Não diga
tolices, minha querida. A estória de Márcio tem como palco certa urbe do nosso
edênico planeta. Ou melhor, uma ilha. Sim, a Ilha de Patrupachas. Trata-se
logicamente de nome fictício, em lugar de Brasília, Lima, Bogotá ou qualquer metrópole.
Originalmente está em Ilha dos
Patrupachas, obra de José Alcides Pinto, singular poeta cearense, falecido
em 2008.
Fiz breve
pausa e dei carinho de pai devotado à unha machucada pelo destino: A ficção de
Márcio está repleta de personagens como nós. O primeiro deles é Crátilo Portela,
o protagonista. A primeira linha é assim: ‘Crátilo Portela parecia um rapaz
ingênuo’. E, então, o narrador onisciente se aplica a contar a vida aventurosa
desse rapaz, cujo nome vem de Platão. A rir, a mocinha me tomou a palavra: Só
agora me dei conta de importante elemento: o narrador. Sim, o romance não é
narrado na primeira pessoa. Dei-lhe puxão de orelhas: Pois precisa abrir os
olhos aos detalhes, se quiser ser mesmo crítica literária. Ela, feito menina
inteligente, saiu-se com esta: Pois vi pormenor não percebido pelo senhor: a
narrativa está cheia de diálogos, sem contar os tradicionais travessões, além
dos verbos dicendi. Além disso, a linguagem é bem tradicional. Saí em defesa de
meu amigo diplomata: A linguagem pode se situar alguns degraus acima da trama. Aliás,
o enredo há tempos perdeu o fôlego e já deve estar morto. A estudante não se
deu por vencida: Só se for nos escritos de gabinete, de interesse exclusivo de
intelectuais, linguistas e estudiosos do ‘fenômeno literário’ (frisou bem essas
duas palavras, em tom de chiste). O povo gosta mesmo é de ação e intriga. Em
razão disso, se dá a grande audiência das novelas de televisão. E eu me fiz
cáustico: Que não é literatura. Ela distraidamente cruzou as pernas sobre o
assento: Sei disso. No entanto, há uma arte literária (a dos livros) próxima da
indigência artística da televisão. Completei seu raciocínio: Outrossim, não é
fácil lapidar joias. Talento, memória, experiência, leitura, capacidade de
observação, conhecimento, tudo isso junto, além de boa dose de dedicação ao
ofício de escrever, não é reservado a qualquer ser humano.
Sentia-me
arrependido de ter tratado com estupidez a garota (sou assim de coração mole,
principalmente em relação às mulheres, motivo principal de meus tombos na vida)
e convidei-a a tomarmos água-com-açúcar. Fomos à cozinha. Alice não se
encontrava lá. Tinha pedido folga: precisava dar jeito nas unhas, nos pelos e
cabelos. Iria ao forró, à noite. Fiquei no mato sem cachorra. Havia suco de
maracujá na geladeira. Educadamente Janete sugeriu: Talvez seja preferível a água-com-açúcar.
Refestelamo-nos de garapa e regressamos à sala de torturas.
Tranquilizado,
agarrei o Redemoinho pelo rabo: Não dedicarei
nenhuma palavra à pessoa de Valdivino ou à nossa amizade. A visita percebeu
minha aparente calma: Vai direto ao escrito? Sim. Então comece.
Tentei
mudar o tom da voz: A invenção de Braz se situa no lugar chamado Redemoinho. A narração é de fatos ocorridos há tempos: ‘Uma
história que começa com o trem, mais ou menos assim:’ Isso (a informação
segundo a qual se narrará a aventura de Antoninho) se dá logo na primeira página.
O narrador se refere ao trem (de verdade) de sua infância: ‘La vem o trem. Tem
andarilho no trilho, tem boi na linha, e lá vem que vem o trem, espantando as
andorinhas pousadas nos fios dos dias que se desfiam’.
A moça
é atenta a tudo: Está cheio de rimas. Não a incitei a prosseguir nessa acidez e
fugi por outro caminho: Além do menino, Antoninho de Marmo, personagens menores
surgem aos poucos, por trás do pano: a mãe (depois se sabe ser Almerinda), o
pai (logo se saberá ser Olegário, o ferroviário, ausente nas primeiras linhas),
certa prostituta (‘uma tal de Aspásia’) etc. E assim a epopeia do menino se
espicha nas páginas, como demorada viagem de trem. Tudo no pretérito. E o
narrador/autor dá até explicação de como se dará (a técnica) a narração: ‘vai-se
por aqui falando aos poucos, com a história que se conta em andamentos
paralelos: fragmentos do presente latente, flashbacks
ou analepses do pretérito renitente’ (p. 11).
Janete
Clair sabe das coisas: É usual esse tipo de narrativa, não é? Sim. Diversos
romances são esse rio subterrâneo a correr (lembrei-me de O. G. Rego de
Carvalho, recentemente falecido) ou essa recordação do tempo perdido (Proust). Parte
do Redemoinho se intitula ‘O rio do
esquecimento’. Poderia ser ‘rio da lembrança’.
Minha
convidada (ó, sem ela eu não sou nada, meus amigos) apresentou outra provocação
útil: Valdivino encheu o relato de citações e alusões a escritores.
Completei-lhe a observação: Não só isso (e isso é a tal da intertextualidade),
mas a menção a músicas e quadros de pintores. Isso é bom? Não me sinto disposto
a tocar nesse assunto, pois minhas ficções são todas nascidas no chão da música
(principalmente brasileira) e da literatura. Por quê? Ora, porque nasci e
cresci (os cariocas pronunciam e dizem ‘naisci
e me criei’) a ouvir Luiz Gonzaga, Dalva de Oliveira, Vicente Celestino, e
passei (ainda passo) a vida a ler. Porém, deixemos de lado essas
particularidades e retornemos ao Braz. A leitora me ajudou: Ele sabe ser artesão
da palavra escrita. Agradeci a frase curta: Sabe escrever, sim. Tem
experiência, tem leitura, tem talento.
Dedicamos mais meia hora
a Valdivino e seu Redemoinho. Depois nos
refugiamos no quarto onde se escondem os espíritos essenciais da alquimia
verbal – Camões, Virgílio, Cervantes – e de lá saímos ao anoitecer,
completamente exaustos.
Fortaleza,
fevereiro de 2014.
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