Acontece neste ano o centenário de um
fato histórico pouco divulgado em nosso Estado, talvez porque envolto numa
série de outros eventos. Refiro-me à invasão da então vila de Calmon, hoje
município do mesmo nome, no ano de 1914, portanto em plena Guerra do Contestado
(1912/1916).
O pequeno povoado modorrava numa tarde de
primavera, 5 de setembro, e o dia se escoava como outro qualquer. Ouvia-se o
canto estridente do bentevi e o trinado de outros pássaros em meio ao arvoredo
folhudo, ainda muito próximo do centro. E o silêncio era violado pelo ruído
cadenciado do maquinário da serraria da Companhia Lumber (Sothern Brazil Lumber
& Colonization Company), um dos braços do chamado Sindicato Farquhar,
instalada na baixada diante da estação ferroviária, do outro lado dos trilhos.
É então que surge na estrada do oeste, na
verdade uma simples picada em meio à floresta, um cavaleiro solitário correndo
a galope no rumo da vila. Olhos esbugalhados, cabelos eriçados, é o retrato do
pavor. Entrando na vila, estaca diante do armazém de Nicola Codagnone a
montaria suada cujas virilhas espumam (*). Apeia rápido, entra no armazém onde
várias pessoas se encontram, e grita:
– Pessoal! Os fanáticos estão chegando e
já mataram muita gente. Onde estão os pistoleiros da Lumber?
Há uma correria. Tratam de avisar os
operários da serraria, tentam convocar a guarda da Companhia e alertam o
telegrafista da estrada de ferro, Antônio. Debruçado sobre o Morse, ele envia um pedido se socorro
ao quartel de Timbó Grande, onde se encontra o capitão Matos Costa: “Socorro!
Bandidos em Calmon. A vila está sitiada.” As estações recebem e retransmitem o
apelo desesperado. Mas é tarde.
Nesse meio tempo uma multidão aponta na
mesma estrada do oeste. São cerca de trezentas pessoas, homens e mulheres
maltrapilhos, eles com as cabeças raspadas (os “pelados”), elas com longos
cabelos soltos. Todos portam uma fita branca e estão armados com velhas
espingardas picapau (de carregar pela boca), algumas pistolas enferrujadas,
facões e ferramentas de trabalho, além de armas improvisadas, feitas de
madeira. Caminham decididos pela rua principal aos gritos de viva São João
Maria e aos Doze Pares de França que reboam na morraria próxima. São liderados
por um jovem entre os 16 e 17 anos, de nome Francisco Alonso, conhecido como
Chiquinho. Era loiro e sua figura é deveras controversa. Segundo alguns, foi
violento desde cedo; para outros sempre se mostrou ponderado. Não obstante,
votava ódio mortal aos gringos, aí se incluindo os funcionários grados, mesmo
brasileiros. Diante da multidão, ele gritava:
–
Morte aos gringos! Poupem as mulheres e crianças!
E o povaréu rugia:
– Roubaram nossas terras! Mataram nossos
filhos! Agora queremos vingança!
Assim decididos, iniciaram o ataque.
Invadiram e incendiaram a estação ferroviária, onde mataram o telegrafista
Antônio, atearam fogo às casas e rumaram para a serraria, símbolo do poder
estrangeiro. A guarda tentou defender as instalações mas foi contida e os
pistoleiros mortos. E tudo foi incendiado numa fogueira monumental. O “colosso”
– como era tratada a serraria – ardeu com seus galpões, pilhas de madeira
serrada, estoque de toras que estavam no pátio e tudo mais. Segundo testemunhos
da época, o fogaréu perdurou por dias e noites, alumiando o sertão em derredor
com suas chamas fantasmagóricas. Muitas casas foram arrombadas e destruídas e
parte da população conseguiu fugir deixando para trás tudo que possuía. Muitas
pessoas foram degoladas.
Consumada a invasão, os revoltosos se
retiram para seu reduto. Levam provas do ataque, como armas, alimentos e jóias
pertencentes aos americanos. Chiquinho Alonso prega numa parede um recado onde
justifica sua atuação como resposta à invasão de suas terras pelos
estrangeiros, ato que atribui à República. Em seguida todos se fartam numa
churrascada comemorativa. Segundo consta, Chiquinho foi morto durante a Guerra
do Contestado. Pouco se sabe sobre ele (**).
No dia seguinte, 6 de setembro, chegou a
vez de São João dos Pobres, hoje Matos Costa. Invadida sob a liderança de
Venuto Baiano, aqui as ações foram radicais. Toda a vila foi incendiada, mortos
todos os homens válidos, não restou pedra sobre pedra. O próprio capitão Matos
Costa, um pacifista que compreendia as posições dos revoltosos, foi morto num
equívoco lamentável.
As invasões de Calmon e Matos Costa
marcaram fundo a população da região e nunca foram esquecidas. Ficaram como
marcas indeléveis na sofrida história de uma região empobrecida pela guerra e
pela prolongada extração de suas riquezas naturais sem receber qualquer
retribuição. Por longos anos viveu no mais completo abandono. Até a ferrovia, a
causadora de tudo, está desativada e entregue ao abandono.
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(*) Sobre esse personagem já escrevi
nesta coluna (“Curioso capítulo de nossa história”).
(**) Sobre a reconstituição da invasão,
consulte-se o livro “A história de Calmon na Guerra do Contestado”, de J. B.
Ferreira dos Santos, do qual me vali em parte (Editora da Uniuv – 2009).
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