Todo santo
dia, Cássio Botelho sai de casa, aí pelas 11 horas, e se dirige a um
restaurante. Procura os menos concorridos. Evita filas. Dá uma olhadela nas
carnes e se decide por esta ou aquela. Às vezes, a gula o trai e ele deixa o
prato pela metade. Sua intenção é nunca se repetir, além de mastigar bem e ter
prazer: hoje peixe frito, amanhã carneiro cozido, noutro dia frango, e assim
por diante. Senta-se o mais distante possível dos comilões. Conhece o mais
profundo asco de pessoas que se comportam como porcos, cachorros, gatos: a cara
enfiada no prato. Tem pavor de certos comportamentos dignos de guerreiros
romanos ou medievais: enfiam o garfo nas carnes (de animais assassinados), como
se matassem feras (cheios de ódio).
Ontem,
contudo, experimentou outro tipo de refeição. Preparou o prato, submeteu-o à
balança, entregou à atendente um cartão de débito e caminhou até a mesa mais
próxima. Ao seu redor, casais se lambuzavam de picanhas; grupinhos de
empregados de empresas se apressavam a devorar coxas de frango e costelas de
porco; senhoras ruminavam, com demora e paciência, arroz regado a caldo de
carne. À sua direita, ninguém. À esquerda, nenhum ser humano. À frente, nada,
além de solidão. Mais de dez mesas completamente desocupadas. Sentiu-se quase
feliz.
Coitado de
Cássio! Mal a breve e pífia felicidade se acercava de seu prato, acomodou-se um
sujeito ao seu lado (à mesa havia quatro acentos, assim como nas demais). Não
pediu licença (pelo menos, não ouviu Cássio tal pedido) e se abancou. A vítima
deu uma espiada no intruso: poderia ser um amigo, um conhecido, uma simpática
senhora solitária. Não o reconheceu. O ilustre cidadão meteu duas ou três
garfadas entre os dentes e puxou assunto: “O senhor viu o caso dos médicos cubanos?”
Cássio não entendeu o motivo da pergunta. “Não, não vi”. Então o outro se
apresentou, como para se dizer sabido, instruído, capaz de ter ideias: “Sou
médico, formado pela Universidade Federal et
cetera e tal”. Cássio não
falou de sua formação acadêmica nem de sua dedicação à literatura. Para quê?
Alguns continhos impressos, dois ou três leitores, desilusões. Enquanto isso, o
desconhecido se dedicou a expor teorias e mais teorias, a respeito da vinda de
médicos cubanos ao Brasil. “São os comunistas brasileiros ajudando os
comunistas cubanos. Uma vergonha, uma safadeza, um insulto a nós médicos e
brasileiros em geral”. Cássio pediu licença e se afastou. Não conseguiu almoçar
direito e retornou à sua casa, quase com fome.
No mesmo
dia, na parte da tarde, encaminhou-se a um shopping.
Pretendia comprar canetas, envelopes, visitar uma livraria e degustar suco de
cenoura com laranja. Depois de muito decifrar títulos e nomes, optou por 14 contos de Kenzaburo Oe. Sentou-se a uma mesinha na praça de alimentação
e retirou o livrão do saco plástico. Em casa, à noite, leria uma peça. Pediu o
suco desejado e aguardou o garçom. Nesse esperar, passou por ele uma jovem.
Devia ter 18 anos. Contemplou o impresso, seguiu, virou a cabeça e, por pouco,
não esbarrou noutro transeunte. Minutos depois, reapareceu. Deve ter dado uma
volta completa pelo quadrado de lojas do segundo andar. Pois, para desassossego
de Cássio, de seu pobre coração sofrido de amor e desamor, aproximou-se devagar
de seus olhos a mocinha. Sorriu e seguiu. Logo, porém, regressou. E tomou
assento à frente do solitário leitor. Apoderou-se dele um medo estranho, quase
um pressentimento ruim. “O senhor conhece Kenzaburo Oe?”
Em dez
minutos, tomou ciência de um resumo da curta vida da estudante: tinha 17 anos,
pretendia ingressar na universidade e gostava de literatura, principalmente
japonesa. A carinha dela seria de filha, neta, bisneta ou trineta de japoneses.
O garçom fazia piruetas entre as mesas. Cássio lhe ofereceu (à jovem obviamente)
suco. Ela aceitou e ele chamou de novo o serviçal. A seguir, percebeu-se Cássio
cercado por dois desconhecidos. Disseram-se agentes da polícia (delegacia da
criança e do adolescente). “Fomos informados de que havia aqui um senhor idoso
com uma menor.” O desconhecido escritor levou um susto daqueles. “O senhor sabe
que está a praticar crime hediondo?” A mocinha se explicava: “Estamos
conversando sobre livros. Deve estar havendo um engano”. Um dos espiões, com
cara de idiota, sorria: “Não importa o motivo da conversa. A lei é clara.
Aproximar-se de criança ou adolescente é crime conhecido como estupro de
vulnerável”.
Cássio
lembrou-se do almoço, do médico anticomunista e teve vontade de desaparecer.
Doou o objeto à japonesinha e se pôs a andar, seguido pelos policiais.
Convidaram-no a conhecer o carro deles, estacionado no subsolo. Depois de muita
conversa, exigiram dez mil reais, em troca da liberdade. “E se eu não aceitar a
extorsão e os denunciar ao delegado?” Eles gargalharam: “Faça isso. Verá se o delegado
acredita em nós ou em você”.
O duplamente
enganado cidadão rumou na direção de um banco (os dois espiões ao seu lado,
sempre) e executou o saque da quantia exigida. Antes de se despedirem,
fotografaram-no (como garantia), apertaram suas mãos (como se fossem amigos) e
se afastaram sorrateiramente. Cássio Botelho fechou os olhos e, como em
relâmpago indesejável e sacrílego, recordou uma imagem antiga, uma cena célebre
e milhões de vezes repetida: ‘Então, aproximando-se rapidamente de Jesus,
disse-lhe Judas: Eu te saúdo, ó Mestre! E lhe deu um beijo’.
Fortaleza,
29/30 de março de 2014.
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