Ganhei de Pedro Salgueiro livrinho (pocketbook) de capa originada de fotografia, cerca de 80 páginas, impresso em Fortaleza. Intitula-se Pici: dos velhos sítios à periferia. Não fosse o subtítulo (ausente na capa), o leitor de fora do Ceará jamais imaginaria Pici como nome de bairro. O povo da capital cearense, porém, sabe muito onde se situa essa parte da cidade. O entendedor de futebol terá outro motivo para falar dela: No Pici está localizado o estádio do Fortaleza Esporte Clube, o grande rival do Ceará Sporting Clube.
Li-o de uma assentada, tão gostoso é. Não por ser também apaixonado por nossa ‘loira desposada do Sol’, nem por ser torcedor do Tricolor de Aço. O danado do livro nos prende desde a primeira linha: “O Pici é um bairro que está localizado na zona oeste da cidade de Fortaleza, capital do Ceará”. Frase ordinária, é verdade. Linguagem de geógrafo ou urbanista. Mesmo assim, o leitor se sentirá atraído pelo relato. Pois são raras as manifestações ‘literárias’ de exaltação à nossa metrópole. Quase todos os críticos da urbe cearense só se sentem realizados quando pintam, com tintas sujas ou pincéis rombudos, a maior ou segunda mais populosa cidade do Nordeste brasileiro.
Lido,
pu-lo nas mãos de Maria Eduarda Ardire. Quem é ela? Resumo a história dela
comigo: Primeiro recebi mensagem curta, nestes termos: “Oi, Nilto Maciel. Tenho
lido suas brincadeiras no blog literaturasemfronteiras. Nunca deixo de cair na
gargalhada. Queria tanto conhecê-lo”. Imaginei-a com cerca de 50 anos, um pouco
além disso, menos de 80; separada recentemente; aposentada de órgão público;
solitária etc. Tudo asneira minha, tudo preconceito. Aparenta 20 anos de idade,
não tem namorado, nunca trabalhou, vive com os pais e três irmãos, adora praia,
balada e toda a liturgia da juventude de hoje.
Uma
tarde, veio me ver, fomos da literatura ao teatro, do cinema à música,
viajamos, sonhamos. Ainda na parte da manhã, dera por encerrada a leitura de Pici. “Se quiser, é seu. Por alguns
dias”. Levou, leu e voltou. E, na segunda visita dela ao meu rancho, passei a
me estender naquelas doidices de ‘frases ordinárias’ e ‘linguagem de geógrafo’.
Impacientava-se a moça com minha lengalenga: “Afinal, trata-se
ou não de romance? O senhor se referiu a estilo de geógrafo ou urbanista. Consiste,
então, num ensaio histórico?” “Não, nada de estudo científico”. “Então é
reportagem?” “Também não”.
Levantei-me
da cadeira de balanço e arrastei os chinelos até a cozinha, a fim de beber
água. De lá mesmo gritei: “O modelo seria o da crônica histórica”. “Será?”
Voltei à sala: “A frase excessivamente presa à gramática, protocolar,
burocrática não é a tônica da obra. Também não apresenta Pedro dicção debochada
ou humorística (tão utilizada por jornalistas engraçados). Quando evoca a si
mesmo, fá-lo como pesquisador e repórter (sem sê-lo)”. “E como testemunha?”
“Não, ele não participou da evolução da localidade. Sendo assim, a intenção
dele (bem realizada) foi ‘contar’ a origem do nome e do bairro, as
transformações impostas pelos homens e as realizações de seus primeiros
povoadores e proprietários. Além de alguns habitantes especiais, a exemplo de
Rachel de Queiroz. Pois se deu lá, na casa por seu pai construída, a elaboração
de seus dois primeiros romances”.
Sem
cerimônia, a aprendiz de leitora me pediu água. Deixei de lado o opúsculo e me
dirigi, de novo, à geladeira. Da cozinha bradei: “Aceita Coca-Cola, cerveja,
uísque, cachaça ou cajuína?” Ela não me deu ouvidos e provocou: “Se a gente
espremer bem esse objeto, talvez não encontre nem 30 páginas do punho de Pedro.
Parte é de Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) e Sânzio de Azevedo, além de
Alfredo Weyne, José Liberal de Castro, Rachel de Queiroz, sua irmã Maria Luíza,
e memorialistas e cronistas menos conhecidos”. “Isso é muito natural em texto elaborado
de acordo com escritos de diversas raízes. Se fossem memórias, possivelmente seria
lícito cuidarmos de excesso de citações. Além de tudo, Pedro Salgueiro nasceu
em 1964, na pequena Tamboril, e conheceu Fortaleza no início da juventude. O
Pici teria se originado do Sítio Pecy, existente desde o século XIX”.
Irritado,
fui ao banheiro, sem pedir licença à jovem. Voltei daí a três minutos,
completamente ensopado de água fria, da cabeça ao peito. “Meu Deus! O senhor tomou
banho?” (Mal acabara de me conhecer, e já me dava tratamento de velho
conhecido, em deslavada intimidade). Agarrei a brochura, sem pensar em
resposta: “O charme dela se acha exatamente nesse amálgama: informações
colhidas em narrativas e depoimentos de antigos habitantes do bairro e pesquisadores
vivos, como Nirez”. “Não precisava transcrever seis páginas das memórias de
Rachel e Maria Luíza, além de quase todo o conto ‘Tangerine-Girl’”. Fechei o volume,
com raiva, e, por pouco, não berrei: “Discordo de sua opinião, menina. As
informações contidas em Tantos anos,
das irmãs Queiroz, são fundamentais. O conto de Rachel é, quiçá, a única peça
literária, de alto valor, a dar ao Pici a condição de lugar onde se desenrola
trama aparentemente simples – ilusão e desilusão de uma adolescente. Além de
ser composição de fina tecelaria”.
Prestes
a me arrepender de ter convidado a estudante a vir à minha residência (“Após a
leitura, traga-mo. Conversaremos sobre ele”), bebi alguns goles de água,
sosseguei e falei baixinho: “Você deve ser menos exigente, garota. Para você,
escrever parece fácil”. “O senhor acha difícil?” “Tão penoso quanto viver no
sertão, em tempo de seca”.
Ao se
preparar para ir embora, Maria Eduarda me perguntou se eu poderia lhe emprestar
O Quinze. “Promete ler e devolver em
quantos dias?” Ela pensou e sorriu: “Em quinze. Está bom assim?”
Fortaleza,
18 de abril de 2014.
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