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sábado, 12 de novembro de 2005

Avarmas de Miguel Jorge (Nilto Maciel)


Avarmas, livro de contos de Miguel Jorge, vem apresentado por um estudo de Gilberto Mendonça Teles, centralizado na noção de "descontinuidade da história". Tendo como ponto de referência a literatura brasileira do final do século XX, percebe-se no escritor goiano o domínio da palavra e da frase, mesmo que, às vezes, não se contenha no utilizar jogo de palavras, como no conto “Jogos de Argolas” (sem redundância), em que palavra e o objeto "argola" se identificam simbolicamente como meios utilizados para prender, laçar, ganhar. Outro exemplo está na aliteração: "a bateria batucava batuque de baque e babaque". Noutro conto aparece a mesma relação palavra-objeto, desta feita o objeto "chave", mas já no sentido oposto de abrir, libertar, como se vê em “Branco sobre Branco”: "Se ao menos pudesse transformá-las (as palavras) em uma chave"... Miguel Jorge se vale muito da imaginação. Certa crítica vê nisso (o irrealismo, o realismo mágico, o fantástico etc) um pecado grave. Ora, tudo o que vem do homem não pode exceder a própria limitação humana, se é que o homem, ou a realidade, tem limites. Assim, é de se acreditar primeiro numa "debilidade mental" generalizada, que seja incapaz de captar ou entender a mensagem transmitida pelo artista ou, mais concretamente, o vôo de imaginação dos artistas (o mais correto seria dizer memória em vez de imaginação). Assim como palavras e línguas são postas em desuso, também o são as idéias. Mas se um baú é um objeto, é também um símbolo. E se não se fala mais o etrusco ou o cariri, as culturas dos etruscos e dos cariris permanecem na memória do homem. Italianos e brasileiros foram reprimidos para esquecer aquelas línguas e culturas. Kafka descreveu o que retirou do esquecimento. É maravilhosa a descrição de um espetáculo mambembe em que homens lançam mulheres com argolas.

A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.

Temístocles Linhares, em 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, analisando os contos de Miguel Jorge, diz: "É a maneira de apresentar ocultando, que se nota em Kafka, em Faulkner, dentro do princípio de que em toda arte se praticam processos de mutilação, tanto quanto de previsão e sugestão". Ora, pois, a arte não é espelho liso e inteiriço – é, no máximo, água em correnteza, em tempestade, é apocalipse. Contos como “Véspera de Pânico”, até pelo título, é uma revelação, a lembrar os textos bíblicos. Com Avarmas, Miguel Jorge veio demonstrar que arte literária não é mero exercício de escrever.
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O filho da solitária (Nilto Maciel)


Quando ele voltou, isto é, quando o trouxeram de volta, não o reconheci. Talvez eu já estivesse ficando cega, caduca, velha demais, como diziam. Não, meu filho parecia mesmo outro. Certamente haviam passado muitos anos desde sua partida, pois ele também não me reconheceu. E nem ainda me reconhece.

Com as quatro patas assentadas no chão frio, vive mudo pelos cantos. Eu o aconselho a cantar, de vez que não quer falar. E a correr, já que não deseja andar. Porém ele apenas coaxa e pula, de quando em quando. Como se tivesse medo de estar livre. Resolvo então espantá-lo com a vassoura. Se assim não fizer, a casa pode virar um monturo, cheia de sapos, ratos, bichos de toda espécie. Paro e vejo: ele me olha com resignada profundidade. Depois dá um pulo, outro, mais outro e foge para o quintal. Se me descuido ou quando é noite, está ele novamente no mesmo cantinho, encolhido, os olhos esbugalhados.

No quintal, mete-se na água suja que escorre da lavanderia, na lama formada ao pé do mamoeiro ou no lixo onde se amontoam os restos de comida reservados ao bacorim desaparecido.

Dia desses, a vizinha da direita, ao ouvir aquele remexido na água, pôs a cabeça sobre o muro e perguntou se me haviam devolvido o porco. Enquanto imaginava a resposta, perguntei-lhe se do lado de lá o muro era baixo. Fui buscar um tamborete, porque julguei ter ouvido roncos de porco, explicou-me. A seguir, arregalou os olhos e perguntou: de quem é este sapão? Você está criando ele para engolir cobras? João olhou para a cabeça que falava e deu uns três pulinhos dentro da água. Tive vontade de dizer um desaforo qualquer. Terminei fazendo graça. Eu o queria para apagar brasas. A safada sorriu e disse: deixe de mentira! Ninguém usa mais fogão a lenha nem fogareiro a carvão. E desapareceu. Fiquei apalermada, a olhar para cima do muro. E ainda ouvi a voz risonha e sumida da vizinha gritar: jogue água salgada nas costas dele.

Dias depois, minha vizinha da esquerda veio me perguntar se, na verdade, eu havia resolvido criar batráquios. Ora, que diabo são batráquios? Quando tiver alguma jia grande me avise. Adoro jias.

Hoje me contaram tudo: meu filho esteve numa solitária, acocorado durante não sei quanto tempo.



(26/5/77)
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