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sábado, 4 de setembro de 2010

Modo de usar (Ronaldo Monte)


Quando criei a coluna “Modo de ser & modo de usar” para o jornal Contraponto, previa que o “modo de usar” causaria estranheza em algumas pessoas. Foi o que aconteceu. Aqui e ali, me perguntam se essa história de usar não seria melhor aplicada às coisas do que às pessoas. Mas quem acompanha a coluna percebe que a maioria dos entrevistados compreende o espírito da coisa e responde sobre a melhor maneira dos outros aproveitarem o que eles produzem.


Quase todo mundo já ouviu falar nos valores de uso e de troca que Marx atribuiu aos objetos feitos pelo homem. Quando uma coisa vira uma mercadoria levada ao mercado, ela tem um valor de troca. Mas antes disso, ela tem um valor de uso, à medida que se torna útil a alguém. Uma pedra, por exemplo, pode prender uma pilha de papéis, enfeitar uma mesa de centro, sacrificar um passarinho ou uma iraniana. Pode também, utilidade suprema, surgir de repente no meio do caminho do poeta.

Não sei por que uma pessoa não teria valor de uso. Podemos não ser mercadoria, mas somos sempre de alguma utilidade para alguém. Pode ter coisa melhor do que se deixar usar e abusar pela pessoa amada? E a mãe que entrega o peito ao uso do filho? Por que temos medo de ser coisas? Em que somos melhores do que um pão ou um martelo?

Um psicanalista, por exemplo, dá-se ao uso pela transferência. Um pintor, um jornalista, valem pela utilidade do seu trabalho. Passam também a ter valor de troca, quando estipulam seu preço no mercado.

O estatuto de coisa, aliás, seria até honorífico para muita gente sem qualquer utilidade que anda por aí. Políticos, bandidos, simples parasitas que nunca bateram um prego numa barra de sabão.

A rigor, nossa entrada no mundo se dá “no meio das coisas” (in media res). É preciso ralar muito para adquirirmos um mínimo de consciência histórica que nos leve a descobrir um modo próprio de ser. No fim de tudo, voltamos a ser coisa, matéria orgânica de muita utilidade. E alguns de nós continuarão a ser coisas úteis na memória das gerações.

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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

P.O.E.M.A. (Raymundo Netto)

(Quadro de Chico Lopes)


Eu quero a poesia concretamente não concreta!?

Um poema não poético não hermético não soneto nem só Netto

Um poema-cuspo na hipocrisia de quem se diz poesia

Sem acordo sem sintaxe nem metro ou morfologia

O meu poema tem de ser vazio da cabeça aos pés

Sem Nossa Senhora sem cachoeiras sem badalos de sinos sem amores fieis

Eu quero um poema que não seja truque nem mágico nem mágica

Que não seja verso nem falso nem farsa

Que chegue a Lém da poeticidade convencional conveniente convexa e com cavas

Que vá como se vás o poeta às favas

Que se escreva com avaro o amor amaro ocre e acre

Com porrada o susto o massacre

Quero a poesia sem sobras sem prantos sem lábios tremulantes

Sem lágrimas lenços brancos sem berço sem fim nem meio

Sem bundas sem coxas olhos ou seios

Um poema que não seja desta terra nem do céu menos da lua

Que não escorregue lânguido entre os poros da pele nua

A poesia sem rima sem ramos sem remos... cem rumos

Eu quero o poema que não seja emo nem poemo

Eu quero paixão que não seja calor

Nem ouro nem prata o meu poema tem de ser de lata

O poema é e tem de ser sempre o perdedor

Decepcionado, decepado e vergastado pela dor

Eu quero quentura que não seja fritura — não quero tristeza eu quero é tristura

Constringe-me a mente a sinérese da minhagonia

De não a querer mais e mais podê-la poema que poesia.

Eu quero a poesia com Creta à mente?!
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