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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Odalisca perdida no meu sonho mouro (Nilto Maciel)


(Para Carmen Sílvia Presotto)

Causa e efeito, causalidade, destino, deus, deuses. Ontem à noite pensei nisso. E consegui dormir cedo, antes das duas horas. Pois ontem acordei bem cedinho. Antes das sete. Acordei com um só pensamento: reler As relações perigosas. A ideia erótica me veio ao acaso (ou por acaso): não tive sonhos amatórios (a não ser com uma cabra que se aproximava do alpendre onde eu dormitava e me lambia os pés); não assisti a filme de devassidão na noite anterior; ninguém me falou de sexo; não imaginei nenhuma mulher. Pois, à tarde, recebi mais uma visita de Jéssica Morais, a menina que conhece literatura russa e quer ser poeta. E sabem o que ela trazia à mão? Não, não eram As relações perigosas. Trazia Les liaisons dangereuses, de Choderlos de Laclos. Para não deixá-la impressionada, não lhe falei de minha manhã de fauno senil nem de minhas dúvidas metafísicas. Sem saber que dizer ou fazer, mostrei-lhe, na mesa, dois livrinhos brasileiros, nada obscenos: Dobras do tempo e Encaixes, de Carmen Sílvia Presotto. Quem é ela? Uma amiga. De onde? Porto Alegre.

Para não me deixar conduzir pelo interrogatório, pus-me a falar da poetisa gaúcha: Professora graduada em Língua Portuguesa e Literatura Clássica, além de formação psicoanalítica. Jéssica fazia uma caretinha (olhei de relance para ela, por acaso). Talvez o senhor precise mesmo dela. Fiz-me de desentendido. Aceita um suco de graviola? Quem fez?

Saciadas nossas sedes, voltei aos livros: Carmen participou de diversas oficinas de literatura. O que são oficinas de literatura? Disse duas ou três frases longas e embaraçosas (como costumam fazer os palestrantes que não sabem explicar o explicável) e sapequei mais informações sobre a escritora sulista: Edita o blogue vidraguas.com.br (Projeto Vidráguas, cujo objetivo geral é “Possibilitar o estudo e a organização de Poemas, Contos, Novelas – escritos – para que saiam das gavetas e ganhem corpo escritural para serem publicados”).

Feita a apresentação, propus-me ler, pelo menos, um poema. E li “Expiação”: “Ah, seu fantasma! / Coloquemos tinta nas veias / Vistamos nossas carnes // Sem pantalhas, / baixemos a cortina / e zarpemos // Decantados / sem frestas nem gavetas / homens-palavras / sejamos!”

Jéssica bateu palmas. Fui além disso, bradei: Viva a Poesia! E tão retumbante se deu meu brado que o eco despertou um passarinho que bicava o chão de meu quintal (seria um pardal?) e seu bater de asas me fez vislumbrar uma noite de terror. Que pesadelos eu teria? Jéssica, não lerei mais Choderlos de Laclos. O senhor tem medo da luxúria? Não, tenho medo de enlouquecer. Ela abriu um dos livros e leu: “Nessas telas absurdas, / um encantamento / entre fantasmas prolifera. // Sujeito metido! / Canta como se tudo que importasse / fosse canção”. Fechou o livro, deu um beijo na capa (receba esse ósculo, Carmen) e decidiu: Depois de Laclos será a vez de Sade. E se despediu de mim, num riso de odalisca perdida no meu sonho mouro.

Fortaleza, 10 de novembro de 2010.
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Sertão de todos nós (Pedro Salgueiro*)

Jornal O POVO (10.11.2010)



Fui, sou e serei, para sempre, apenas um sertanejo exilado no litoral. Nada aqui me diz respeito, por aqui tudo é transitório, passageiro... Apenas espero a triste hora do alegre regresso. Aos trinta, por puro esnobismo, comprei gaiola na última linha do oceano. Cuidadosamente de costas pro mar, pra que toda manhã pudesse desdenhar meu asco de pequeno-burguês físico mas nunca mental. De lá pra cá andejo em linha reta rumo aos Inhamuns. Aos quarenta atravessei a fronteira imaginária da 13 de Maio, linha simbólica de todas as Fortalezas. Em sentido contrário aos tolos, tontos suburbanos mentais. Meu voo é de avoante ferida, com tiro de chumbo nas c’roas do rio Acaraú, nas quebradas do Riacho do Gado, por trás da Barra da Oiticica, de lado da Caconha de todos os loucos. Pois em cada quarto de qualquer família pulula um doidinho de testa quadrada, encarnado de sangue da abelha Capuchu... Enquanto o Diabo, rosianamente, redemoinha no terreiro. Gracianamente seco, corre meu sangue pelas veredas pedreguentas do Carão. Do outro braço, o direito, o sangue das tristes Oliveiras, dos tontos bons da Curimatã, do Jumentão da Maravilha. Apenas quando se estende pelas estradas do Canindé, as palavras vão escasseando, até quase sumirem da voz. Água evaporando na língua morna de todos os nós. De marejado apenas os olhos, único órgão úmido do sertanejo que volta. Sou filho, pelos dois lados, da primeira geração que saiu do campo, que desbravou a cidadezinha no pé da Serra das Matas. Não sou filho de matuto urbano, mas de matuto dos matos, de pés rachados na urina do lajedo quente. Meu pássaro é o Camiranga de beira de caminho, comedor de Cassaco e Tejubina de grota. Meu ouvido é de rabeca triste cantada por cego em final de feira. Minha casinha é branca, de parede grossa, quase na sombra de uma Jurema imaginária. Mesmo longe de nosso chão, formamos confrarias de quase surdos-mudos. Apenas olhamos para o nascente a perscrutar chuva. E quando ela vier, é certo que vem, virá sempre, um dia. Já nos encontrará de mãos trêmulas e mala pronta.

* Pedro Salgueiro é cearense de Tamboril. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), todos de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas.
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