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sábado, 13 de novembro de 2010

Eleição (Jéssica O. Dias*)


Confusão. O suor escorria pelas têmporas, ele apertava os olhos, erguia as sobrancelhas, esticava o indicador; um calafrio perpassava o corpo, a mente quase explodindo, milhões de números na corrida do futuro. O peso de fazer a escolha errada dominava. E, agora, o que fazer?

– Vota! – gritou o mesário.

– Você demora demais, a fila é muito grande! – gritou a outra.

A pressão aumentava, a mental e a corpórea; são tantos cargos políticos em quem votar pra cada um?

– Apresse, moço!

– O Brasil não tem futuro, não! Vota em qualquer um!

Diante disso, Alberto quase entra em estado de choque. Como pode o cidadão tratar dessa maneira o futuro da nação? O voto é tão banal assim? Alberto iniciou essa discussão com o mesário.

– Essa não é a hora de refletir qual o melhor candidato, senhor. A campanha serve para isso.

Errou Alberto, errou o mesário.

– A pressa é inimiga da perfeição.

– A demora é inimiga do tempo e da população.

Alberto digitou os números que venceram a corrida em sua mente. A tecla verde o encarava como num pesadelo que duraria quatro anos. A culpa por não dar atenção às campanhas eleitorais dos candidatos o possuía e, antes que mais alguém gritasse, Alberto apertou a tecla verde. O som da urna encheu a sala e todos os mesários, antes em pé, se sentaram aliviados.

Foi a confirmação de que ninguém dá valor à eleição. Nem mesmo o mesário, que tem o dever de mostrar a importância desse fato histórico. Alberto confirmou que todo cidadão, não importa a eleição, não reflete durante as campanhas sobre qual o melhor candidato, e, no melhor estilo brasileiro, deixa pra fazer tudo em cima da hora.

– Cinco horas, acabou o tempo, fim da sessão!


*Jéssica O. Dias tem 14 anos de idade e cursa o 9° ano, em Fortaleza.
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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Odalisca perdida no meu sonho mouro (Nilto Maciel)


(Para Carmen Sílvia Presotto)

Causa e efeito, causalidade, destino, deus, deuses. Ontem à noite pensei nisso. E consegui dormir cedo, antes das duas horas. Pois ontem acordei bem cedinho. Antes das sete. Acordei com um só pensamento: reler As relações perigosas. A ideia erótica me veio ao acaso (ou por acaso): não tive sonhos amatórios (a não ser com uma cabra que se aproximava do alpendre onde eu dormitava e me lambia os pés); não assisti a filme de devassidão na noite anterior; ninguém me falou de sexo; não imaginei nenhuma mulher. Pois, à tarde, recebi mais uma visita de Jéssica Morais, a menina que conhece literatura russa e quer ser poeta. E sabem o que ela trazia à mão? Não, não eram As relações perigosas. Trazia Les liaisons dangereuses, de Choderlos de Laclos. Para não deixá-la impressionada, não lhe falei de minha manhã de fauno senil nem de minhas dúvidas metafísicas. Sem saber que dizer ou fazer, mostrei-lhe, na mesa, dois livrinhos brasileiros, nada obscenos: Dobras do tempo e Encaixes, de Carmen Sílvia Presotto. Quem é ela? Uma amiga. De onde? Porto Alegre.

Para não me deixar conduzir pelo interrogatório, pus-me a falar da poetisa gaúcha: Professora graduada em Língua Portuguesa e Literatura Clássica, além de formação psicoanalítica. Jéssica fazia uma caretinha (olhei de relance para ela, por acaso). Talvez o senhor precise mesmo dela. Fiz-me de desentendido. Aceita um suco de graviola? Quem fez?

Saciadas nossas sedes, voltei aos livros: Carmen participou de diversas oficinas de literatura. O que são oficinas de literatura? Disse duas ou três frases longas e embaraçosas (como costumam fazer os palestrantes que não sabem explicar o explicável) e sapequei mais informações sobre a escritora sulista: Edita o blogue vidraguas.com.br (Projeto Vidráguas, cujo objetivo geral é “Possibilitar o estudo e a organização de Poemas, Contos, Novelas – escritos – para que saiam das gavetas e ganhem corpo escritural para serem publicados”).

Feita a apresentação, propus-me ler, pelo menos, um poema. E li “Expiação”: “Ah, seu fantasma! / Coloquemos tinta nas veias / Vistamos nossas carnes // Sem pantalhas, / baixemos a cortina / e zarpemos // Decantados / sem frestas nem gavetas / homens-palavras / sejamos!”

Jéssica bateu palmas. Fui além disso, bradei: Viva a Poesia! E tão retumbante se deu meu brado que o eco despertou um passarinho que bicava o chão de meu quintal (seria um pardal?) e seu bater de asas me fez vislumbrar uma noite de terror. Que pesadelos eu teria? Jéssica, não lerei mais Choderlos de Laclos. O senhor tem medo da luxúria? Não, tenho medo de enlouquecer. Ela abriu um dos livros e leu: “Nessas telas absurdas, / um encantamento / entre fantasmas prolifera. // Sujeito metido! / Canta como se tudo que importasse / fosse canção”. Fechou o livro, deu um beijo na capa (receba esse ósculo, Carmen) e decidiu: Depois de Laclos será a vez de Sade. E se despediu de mim, num riso de odalisca perdida no meu sonho mouro.

Fortaleza, 10 de novembro de 2010.
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