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quinta-feira, 24 de março de 2011

Poemas (Dércio Braúna)

Abstrato - Fernando Odriozola


PREPARO UMA LUZ



Este chão já não tem limpeza possível.
Mia Couto
Vinte e zinco



Velo por minhas circunstâncias.

Estou nudo
das armas contemporâneas,
solene sobre o escuro estrado
no centro duma praça aberta
                              e cinza.
Nela há homens mais nudos que eu,
porém gozam do triste benefício
da profunda aniquilação.

O tempo, o mar que espia,
o homem que expia,
tudo parece praparado
para a triste glória dum tempo antigo
que hemos de ter.

Os ossos de minhas circunstâncias,
já os acendo:
          preparo uma luz
          para dias malditos ―
          os em que pisaremos
          o coração do irmão.




Abstrato - Flávio Shiró



DADOS BRUTOS



Eu sou muitas pessoas destroçadas
MANOEL DE BARROS
Livro das Ignorãnças



I.

um dia
vinte e quatro horas
cem mil soldados
um sem-número de tanques

seis homens-bomba

um império
(que Deus [?] sempre o salva)

uma enfermaria
quinze crianças mortas
um pão para dois
(uma falta para tantos!)
um bilhão
uma bomba
                     pólvora
                     pedaços
                     poeira
           povo
gente
          (algo se esvai...)

um osso exposto
um grito
(o homem, por que não sara?)
um cão-vagador
uma nota na imprensa
dez estrelas aos ombros

um general
uma relatório
centenas de baixas
um despacho
um mercado abaixo
uma ponte abaixo
uma terra abaixo
(quantas indigências sob a vala rasa!)

um dia...
(arrastado desde o tempo dos tempos!)
pergunto:
                 evoluiremos do vírus
                 algum dia?


II.

Há no mundo um imundo cão-vagador
farejando a carniça dos que quedam rotos:
Deus bem pode ser um de seus nomes.




 
*Dércio Braúna é historiador, poeta e contista, autor de O pensador do jardim dos ossos (Expressão Gráfica e Editora, 2005), A Selvagem Língua do Coração das Coisas (Realce, 2005), Metal sem Húmus (7 Letras, 2008), Uma Nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto (Scripta Editorial, 2008), Como um cão que sonha a noite só (7 Letras, 2010). Contato: derciobrauna@bol.com.br.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Sapatos & cia (Simone Pessoa)



Tenho meus caprichos. E sapato é um deles. Não passo por uma vitrine de sapatos sem parar e olhá-los longamente. Gosto de examinar os designs, as texturas, as cores, os saltos. Dificilmente encontro um par que me atenda a todos os requisitos. Se tem um belo modelo, o salto é alto. Se o salto é de altura aceitável – nem alto nem rasteiro – o modelo não me agrada. Se o modelo me agrada e o salto é adequado, ainda tem que passar pelo teste do conforto. Sapato que machuca em algum canto do pé não vale a pena. Finalmente ele precisa caber no bolso: se for muito caro, está fora de cogitação.