Translate

quarta-feira, 27 de março de 2013

Apontamentos para berliques e berloques (Nilto Maciel)




Muitos de meus contos surgem num repente, inteiros, bloco informe, pedra bruta. De posse deles, conduzo-os à oficina, lavo-os, lapido-os. Outros vêm aos pouquinhos, em gotas ou poções. Aparecem sorrateiramente, ou se anunciam de longe. Aproximam-se de mim e, quando cuido, estão instalados em meus dedos, em meus olhos, em minha cabeça. Aceito-os como filhos ou mimos (não sei quem os manda). Muitas vezes, achegam-me apenas uma ideia, um esboço, uns traços de figuras humanas, fiapos de enredo. Rumino tudo isso (se estiver prestes a dormir ou mesmo em sono profundo) e, no dia seguinte, realizo o traslado das “informações”. Assim fiz, dia desses. Acordei, vislumbrei réstias de sol pela janela encoberta por cortina, sentei-me à beira da cama e caminhei para o banheiro. Entrei em transe, vaguei, cego e desorientado, até a mesa onde vive o computador, e debuxei a mensagem, quase na íntegra: “Personagens: Artur, o marido, 33 anos, engenheiro, viajava de 15 em 15 dias para alto-mar. Falava pouco, trancado quase todo o tempo no que chamava de escritório. Tudo isso deixava Júlia muito apreensiva, nervosa até. Júlia, a mulher, 28 anos, vivia em casa (tinha sido professora na cidade), filha de pequeno comerciante, sem filhos, vaidosa, caixa de madeira cheia de berliques desde que a avó lhe dera os primeiros brincos: berloques, penduricalhos, badulaques, pingentes. Anastácia, menina de oito anos, filha adotiva do casal (deixar isso bem obscuro até o final), meio espantada, alheia, a andar pelos recantos escuros, pelos matos, a contar histórias misteriosas de caixinhas de madeira, de pássaros mudos e invisíveis, de carruagens em trânsito pela estrada. Na verdade, filha de Artur e de Sabrina (mulher do caseiro), quando Júlia teve aborto e nunca mais engravidou. Então Artur conheceu Sabrina (ainda solteira, menor de 16 anos) e lhe prometeu vida boa, se lhe desse um filho. Nasceu uma menina (imediatamente levada a Júlia) e depois se arranjou o casamento de Sabrina com Lucas. Para sacramentar a união, foi-lhes oferecida uma casa, dentro da propriedade. Geraram três seres. Casa de boa aparência, com água encanada, banheiro, três quartos. Lucas cuidava dos cavalos e vigiava a propriedade. Andava armado”.

terça-feira, 26 de março de 2013

Sobre Cassas (W. J. Solha)





 (Luís Augusto Cassas)

          A Imago lançou no ano passado em dois volumes que somam cerca de 1400 páginas A Poesia Sou Eu, de Luís Augusto Cassas, com toda a sua poesia reunida. Sob a égide do São Luís do Maranhão e juntando um catolicismo apaixonado e barroco a um profundo amor à cidade igualmente antiga Cassas vem construindo uma obra que eu desconhecia e que agora me causa assombro, pelo volume e pela qualidade. Na sua dedicatória, ele me disse que me mandava sua vida "tornada verso". E tem razão. Sente-se, no correr dos anos, uma personalidade poética que começa já excelente e que vai, lentamente, se desvencilhando das influências e se tornando única, o que me parece ter acontecido na realização de "Em Nome do Filho: Avento de Aquário"  lançado em 2003, quando o autor completava 50 anos. Alguma coisa do que li deixo para reler daqui a um ou dois anos se viver o suficiente pois me lembro de que quando comprei, há... séculos... um disco em que havia, de um lado, a Tocata e Fuga em Ré solo de órgão  e, do outro, a Chacona da Partita número 2 em Ré Menor solo de violino, deslumbrei-me com a primeira e abominei a outra, cuja beleza levei muito tempo para assimilar. Digo isso porque um poeta como Cassas supera em muito um leitor como eu como Bach me supera e eu jamais ousaria dizer do autor da Paixão Segundo Mateus, dos Concertos Brandenburgueses ou das Variações Goldberg  "não gosto disto e daquilo, dele", porque sei que foi Bach, naqueles momentos, que me deixou demasiado pra trás e que o que tenho a fazer é correr atrás do prejuízo. Claro que a monumentalidade do que alcancei na poesia do maranhense é tanta que me permite a ponderação. Que maravilha vê-lo dizer que sua cidade o nomeia "fiel protetor / das pedras do nosso chão" e seu "defensor perpétuo e lírico". Imagino que, de certo modo, um maranhense acompanhe essa obra com intensidade ainda maior do que a que me chegou. Em compensação, recebo-a no restrito campo do universal, como a Dublin de Joyce, a Londres de Virginia Woolf, o Recife do Kleber Mendonça Filho, a Mannhatan de Woody Allen e Gershwin, a Delft de Vermeer, e isso é mais do que suficiente.
          "Pedra nossa/ da rua do giz / santificai/ são luís".

/////