Muitos de
meus contos surgem num repente, inteiros, bloco informe, pedra bruta. De posse
deles, conduzo-os à oficina, lavo-os, lapido-os. Outros vêm aos pouquinhos, em
gotas ou poções. Aparecem sorrateiramente, ou se anunciam de longe. Aproximam-se
de mim e, quando cuido, estão instalados em meus dedos, em meus olhos, em minha
cabeça. Aceito-os como filhos ou mimos (não sei quem os manda). Muitas vezes, achegam-me
apenas uma ideia, um esboço, uns traços de figuras humanas, fiapos de enredo.
Rumino tudo isso (se estiver prestes a dormir ou mesmo em sono profundo) e, no
dia seguinte, realizo o traslado das “informações”. Assim fiz, dia desses.
Acordei, vislumbrei réstias de sol pela janela encoberta por cortina, sentei-me
à beira da cama e caminhei para o banheiro. Entrei em transe, vaguei, cego e
desorientado, até a mesa onde vive o computador, e debuxei a mensagem, quase na
íntegra: “Personagens: Artur, o marido, 33 anos, engenheiro, viajava de 15 em 15
dias para alto-mar. Falava pouco, trancado quase todo o tempo no que chamava de
escritório. Tudo isso deixava Júlia muito apreensiva, nervosa até. Júlia, a
mulher, 28 anos, vivia em casa (tinha sido professora na cidade), filha de
pequeno comerciante, sem filhos, vaidosa, caixa de madeira cheia de berliques
desde que a avó lhe dera os primeiros brincos: berloques, penduricalhos,
badulaques, pingentes. Anastácia, menina de oito anos, filha adotiva do casal
(deixar isso bem obscuro até o final), meio espantada, alheia, a andar pelos recantos
escuros, pelos matos, a contar histórias misteriosas de caixinhas de madeira,
de pássaros mudos e invisíveis, de carruagens em trânsito pela estrada. Na
verdade, filha de Artur e de Sabrina (mulher do caseiro), quando Júlia teve
aborto e nunca mais engravidou. Então Artur conheceu Sabrina (ainda solteira,
menor de 16 anos) e lhe prometeu vida boa, se lhe desse um filho. Nasceu uma
menina (imediatamente levada a Júlia) e depois se arranjou o casamento de
Sabrina com Lucas. Para sacramentar a união, foi-lhes oferecida uma casa,
dentro da propriedade. Geraram três seres. Casa de boa aparência, com água
encanada, banheiro, três quartos. Lucas cuidava dos cavalos e vigiava a
propriedade. Andava armado”.
Algumas
de minhas criaturas eu as delineio desse jeito, minuciosamente. Dou-lhes
substância e aspecto de protagonista. Outras rompem mais apequenadas, com cara
de secundárias. Entretanto, muitas vezes, fulano desponta para o papel
principal, mas termina como figurante. Ocorre até de nem ser mencionado ou não
passar de um nome referido em diálogo ou monólogo. Dirigi-me à cozinha, encarei
a geladeira (não sabia o que fazia), voltei à sala e registrei isto: “Outros:
Dona Bárbara, mãe de Júlia, passou a viver com eles, após a morte do marido,
ocorrida logo depois da interrupção da gravidez da filha. Passava os dias na
sala ou no quarto, a bordar ou ler revistas, quando não fiscalizava a casa.
Mostrava amor pela menina, mas a via como intrusa. Aparecia de noite pelos
corredores, lanterna à mão. Vigiava a entrada de Pedro, o motorista e mecânico
da família. Esse rapaz morava distante do sítio e seria amante de Júlia.
Solteiro, 22 anos, namorava uma moça das redondezas. Chamava-se Vanessa, exercia
o papel de cozinheira da casa. Chegava cedinho, todo dia, para trabalhar, e só
ia embora à noitinha”.
Lembrei-me
de tomar café, na padaria. Vesti uma camisa suja e, quando me preparava para
cobrir as pernas, me vieram à lembrança mais umas observações. Deixei a calça
no cabide, voltei à sala e transcrevi isto: “Todas as informações são dadas em
curtos diálogos transmitidos pelo narrador onisciente. Exceto a movimentação
dos personagens (na casa e na propriedade), em diversas ocasiões (takes,
tomadas). Isto será contado diretamente pelo narrador ao leitor”. (Muitas vezes,
escrevo como se elaborasse roteiro para filme. Ou como se estivesse em pleno
processo de filmagem). Descrevi também ambientes e feições de alguns entes
humanos: bigode preto e aparado do homem, vestido branco da mulher, cabelo
loiro e encaracolado da menina, cara de touro do motorista moreno.
Destes
apontamentos resultou o conto “Berliques e berloques”. Passei alguns dias
envolvido com ele, a fazer assinalações, mudar isso e aquilo, cortar aqui,
enxertar ali. Sonhei diversas vezes com Júlia. Sempre de mau humor, deitada no
sofá ou à janela. A amaldiçoar cães e gatos, meninos e moços, sombras e
claridades. Nunca consegui ver Artur. Minto: uma vez o vi, a entrar numa loja,
não sei se para cães ou homens muito ocupados. Carregava um bigodinho bem
aparado e cumprimentava os empregados. Vestia roupas folgadas, escuras e
suficientes para esconder pistola. Voltei da porta e me perdi numa ruela
escura. Isto não está no conto. Preferi me manter o mais possível longe do
homem.
Tive
muito receio de pintar a menina. Talvez se parecesse com uma de minhas filhas
(muitos anos atrás). Ou uma de minhas netas. Ou outra garota vista na rua, em
shopping, numa loja. Nunca sonhei com ela. Pintei-a desse modo: “Anastácia se
aproximou, devagar, pelo canto das paredes. A mulher demonstrou ter tomado
susto. Pare de se portar assim, menina. Parece visagem. Amedrontada, a miúda
correu ao encontro da avó, na cozinha. Não a abraçou, como em outras ocasiões.
Temia ser repelida, mais uma vez: Não me agarre assim com força. Você pode me
derrubar”.
Muitas
vezes, confundo meus seres fictícios com atores e atrizes de dramas nem sempre
muito conhecidos. Sou doido por fitas, principalmente as mais antigas. Quase
sempre perco o fio da meada. Fulano chega a uma sala, olha para os lados.
Acho-o parecido com um sicrano de um de meus contos ou romances. Não exatamente
dos já escritos ou publicados, porém dos relatos ainda em fase embrionária.
Afasto-me de cenas de sexo e violência. Não por moralismo ou puritanismo, temor
a isto ou aquilo. Não me furto a assistir a películas desse tipo, se nelas
houver arte. No entanto, logo mudo de canal. Ou desligo o aparelho. Um minuto
depois, volto ao filme. Se a cena não tiver passado (se demorar mais de um
minuto), é sinal de que a história não presta. Adoto, para a literatura, esse
mesmo modo de analisar narração cinematográfica. Sou leitor e admirador de
Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Não me importa serem os representantes máximos
no Brasil, na segunda metade do século XX, de uma literatura de narração de exercícios
sexuais e de cenas de violência, respectivamente. Entretanto, sou mais afeito a
ler, com calma, circunvoluções do pensamento das pessoas (não do narrador),
como em Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, Moreira Campos, O.
G. Rego de Carvalho, Raduan Nassar. O simples relato de fatos é mais condizente
com a velha narrativa linear, tão cara ao romantismo, a aventura, o pitoresco (a
engenharia novelesca). Sou mais seduzido pelo enredo velado, escondido atrás de
véus, pelo oculto nas entrelinhas. Não pelo grito, mas pelo sussurro. O enigma.
Ah, como adoro o enigma Capitu! Recriado por Trevisan, com muita pimenta.
Fortaleza,
11 de janeiro de 2013.
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