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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Aéreo (Anderson Braga Horta)


(Tristeza de poeta, de Ianka, colhido em gartic.uol.com.br)

O melhor de mim
está solto no vento.
Mãos, raízes, searas
e outras nuvens que invento.

                               Ai, o melhor de mim
                               no vento é que está.
                               Utopias, pandorgas
                               que menino avento.

Entretanto maduro
para todos os ares,
os semeio, e mais colho
aurassóis: cata-vento.

                               E, arando brisas, onde
                               me lamento, aí canto.
                               Pois o melhor de mim
                               frutifica no vento.

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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Cinco horas de lubricidade (Nilto Maciel)



                                (Badida Campos, Dois personagens à minha procura)

Ando, de novo, sem tempo para leituras demoradas. Acicatam-me as têmporas dois projetos faraônicos: um romance (o personagem central é Antonho Mendes, devotado há anos a inventar histórias sertanejas na terra do futuro Antônio Conselheiro) e um ensaio (a história recente da literatura cearense, a partir de 1970).

Em razão dessa minha entrega total aos dois edifícios (tenho dormido, no máximo, quatro horas, a cada volta da Terra sobre si), pedi ajuda a Cleto Milani: “Se minha dedicação a um opúsculo demorar uma hora, a sua deve durar duas. Em uma hora de conversa, rabiscaremos uma resenha”.

Dei início a esta nova fase de leituras/comentários, com cinco coletâneas recebidas em outubro passado: Dueto para sopro e corda, 2ª edição (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2013), de Jorge Tufic; Nação Poesia – Antologia poética (Florianópolis: Edições A Ilha, 2011) e Borboletas nos Jacatirões (Blumenau: Hemisfério Sul, 2007), de Luiz Carlos Amorim; O Clube dos Feios & outras histórias extraordinárias, 2ª edição (Rio de Janeiro: 7Letras, 2013), de Carlos Trigueiro; e Tardios manuscritos juvenis (Fortaleza: Vocabulário UM Editora, 2011), de Rafael Caneca.

Se me não engano, conheci a primeira edição do Dueto, pois sou devoto de Tufic há milhares de anos. Afundei-me nos contos de Trigueiro também ainda na primeira leva e cheguei a comentá-los. Como não costumo me enganar, não aceito ser enganado. Agarrei o celular e achei Cleto: “Como anda sua oficina?” “Excessivamente bem, doutor. Estou com três alunas maravilhosas...” Como fosse iniciar formidável mentira, mudei de assunto, bruscamente: “Você já examinou alguma destas publicações?” E citei, uma a uma, as cinco mencionadas no início desta crônica. “Não faço ideia das obras e, menos ainda, dos autores. São bons? Você recomenda a leitura delas?” Num piscar d’olhos, bateu ao meu portão. Conversamos por dez minutos, tomamos café (Alice, a minha, aparentava ter amanhecido com veia boa) e lhe passei o pacote. “Volte quando conseguir desvendar tudo”. Ele me obedece cegamente.

Não demorou três dias, bateu à minha porta. “Alice, vá receber o nosso ancião. Porém, tenha muito cuidado com a mão direita dele”. Riu, saiu, a serpentear, pelo corredor, e voltou, mãos dadas com o sátiro do Benfica. Ela se enfiou na cozinha; ele, com sorriso de libertino, devolveu-me os impressos e pousou no sofá. Quase não abri o bico. E o devasso, sem concorrente, demonstrou o quanto sabe tagarelar:

O Dueto para sopro e corda, de Jorge Tufic, é dividido em duas partes: sonetos e poemas. Ora, Nilto, sonetos também são poemas”. Fiz ouvidos de mercador. “O velho sabe sonetar, quer com rima, quer sem ela. E isto o torna bom poeta”. Completei: “Também”. Como se não desse importância a mim, o visitante voltou à análise: “Alguns sonetos não têm divisão estrófica, sem justificativa, pois todas as estrofes teriam ponto no final do último verso”. Tomei-lhe a palavra: “Uma das características da poesia de Tufic nesse inventário é a homenagem a poetas brasileiros e estrangeiros. E isto o torna mais encantador”. Com a intenção de me espicaçar, Milani quis saber se havia homenagem a mim, na coleção. Não vi; isto, no entanto, não o torna menor aos meus olhos. Pois, quem modela versos como estes, não pode ser pequeno ou médio; é grande: “O poeta é um barco / por ele mesmo / desnavegado. / Se acontece haver porto, / outros portos flutuam / de atlântidas / submersas”.

Chegado o momento de Luiz Carlos Amorim, entreguei ao vetusto habitante do Benfica os dois volumes: “Solte o verbo, meu amigo”. E ele me atendeu: “Em Nação Poesia: Antologia poética, a poesia beira a ingenuidade. Tanto no modo de expor os conceitos (próximo do coloquial), como nos assuntos tratados”. E soletrou uns versos: “No meio da madrugada, agarro com tanta ânsia / as asas brancas de um sonho”.  Passamos ao segundo tomo: “Impliquei com o título; nunca li nem escutei o vocábulo jacatirões”. Recriminei-o: “Isso não tem importância. Por que você não centra sua análise na prosa do poeta? Você viu como a crônica ‘Meu pé de jacatirão e as borboletas de Quintana’ é recheada de poesia? Vamos reler um trecho? ‘É manhã de domingo e o dia está triste, cinzento. O sol não saiu. Abro a janela e vejo meu pé de jacatirão com suas flores vermelhas, brancas e dessas duas cores misturadas, muito vivo’”. Cleto me cutucou, como se houvesse alguém na sala, além de nós: “A última frase me parece incompleta; falta-lhe um verbo, talvez”. Fiz o papel de embromador: “O estilo de Amorim deve ser este”.  

Dei total liberdade ao meu convidado: “Critique à vontade esse excepcional Carlos Trigueiro”. Pôs-se a passear pel’O Clube dos Feios: “Você tem razão: os assuntos tratados pelo contista fogem completamente ao trivial da literatura brasileira. A começar pelo primeiro conto, o do clube dos feios”. Analisou cada uma das peças e assim concluiu o comentário: “Trigueiro narra com a intenção de entreter o leitor. Em vista disso, o dialeto literário utilizado é o mais comum possível. Até criança na primeira fase do aprendizado escolar gostará das histórias extraordinárias desse amazonense singular. Nenhum malabarismo verbal, nada de vocábulos do outro mundo, mesmo quando se refere a ‘hunos de clavas estruturalistas’ ou a ‘contabescer é o destino do homem’”. Interrompi-o. Precisávamos correr. A secretária do oftalmologista me telefonara cedo: “Seu Nilto, não se esqueça da consulta, hoje, às 17 horas”.

Observei o relógio: “Dedique trinta minutos a analisar os contos do jovem Caneca”. Agarrou os Tardios manuscritos juvenis e iniciou a tagarelice: “Uma das particularidades da dicção de Rafael é a uniformidade. Ele nunca se excede, nunca se desvia do caminho traçado. O ledor não é levado a surpresas ou mistérios. Não há atrevimentos inesperados dos narradores, apesar de um deles chasquear de quem usa clichês”. Eu me embasbacava. Como pode um crítico ser tão corrosivo? Ao contrário de Milani, vejo no jovem escritor a melhor das intenções: a de contar histórias curtas, do cotidiano dos brasileiros, sem a pretensão de demonstrar eruditismo ou de experimentar linguagens de difícil entendimento. Ele não revela tudo, deixa por conta do leitor o preenchimento das lacunas, das entrelinhas. Exemplo disso está na primeira história (“Pulse”): o protagonista (apresentado por voz onisciente), apesar de ser cidadão normal, que ouve música, trabalha, bebe cerveja, se mostra como pessoa solitária em crise. E qual seria essa crise? Nem se sabe a idade do rapaz. Ou se mora só, se tem namorada, onde trabalha, se ainda estuda.

Mirei outra vez o relógio e anunciei necessidade de me retirar e encarar o oftalmologista. Milani me sondou, da cabeça aos pés, com desconfiança: “Ou irá espiar o mundo de Cecília?”

Fortaleza, 2/4 de novembro de 2013.

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