(Badida Campos, Dois personagens à minha procura)
Ando, de novo, sem tempo
para leituras demoradas. Acicatam-me as têmporas dois projetos faraônicos: um
romance (o personagem central é Antonho Mendes, devotado há anos a inventar
histórias sertanejas na terra do futuro Antônio Conselheiro) e um ensaio (a
história recente da literatura cearense, a partir de 1970).
Em razão dessa minha entrega total aos dois edifícios (tenho dormido, no máximo, quatro horas, a cada volta da Terra sobre si), pedi ajuda a Cleto Milani: “Se minha dedicação a um opúsculo demorar uma hora, a sua deve durar duas. Em uma hora de conversa, rabiscaremos uma resenha”.
Em razão dessa minha entrega total aos dois edifícios (tenho dormido, no máximo, quatro horas, a cada volta da Terra sobre si), pedi ajuda a Cleto Milani: “Se minha dedicação a um opúsculo demorar uma hora, a sua deve durar duas. Em uma hora de conversa, rabiscaremos uma resenha”.
Dei início a esta nova
fase de leituras/comentários, com cinco coletâneas recebidas em outubro
passado: Dueto para sopro e corda, 2ª
edição (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2013), de Jorge Tufic; Nação Poesia – Antologia poética
(Florianópolis: Edições A Ilha, 2011) e Borboletas
nos Jacatirões (Blumenau: Hemisfério Sul, 2007), de Luiz Carlos Amorim; O Clube dos Feios & outras histórias
extraordinárias, 2ª edição (Rio de Janeiro: 7Letras, 2013), de Carlos
Trigueiro; e Tardios manuscritos juvenis
(Fortaleza: Vocabulário UM Editora, 2011), de Rafael Caneca.
Se me não engano,
conheci a primeira edição do Dueto,
pois sou devoto de Tufic há milhares de anos. Afundei-me nos contos de
Trigueiro também ainda na primeira leva e cheguei a comentá-los. Como não
costumo me enganar, não aceito ser enganado. Agarrei o celular e achei Cleto:
“Como anda sua oficina?” “Excessivamente bem, doutor. Estou com três alunas
maravilhosas...” Como fosse iniciar formidável mentira, mudei de assunto,
bruscamente: “Você já examinou alguma destas publicações?” E citei, uma a uma,
as cinco mencionadas no início desta crônica. “Não faço ideia das obras e,
menos ainda, dos autores. São bons? Você recomenda a leitura delas?” Num piscar
d’olhos, bateu ao meu portão. Conversamos por dez minutos, tomamos café (Alice,
a minha, aparentava ter amanhecido com veia boa) e lhe passei o pacote. “Volte
quando conseguir desvendar tudo”. Ele me obedece cegamente.
Não demorou três dias,
bateu à minha porta. “Alice, vá receber o nosso ancião. Porém, tenha muito
cuidado com a mão direita dele”. Riu, saiu, a serpentear, pelo corredor, e
voltou, mãos dadas com o sátiro do Benfica. Ela se enfiou na cozinha; ele, com
sorriso de libertino, devolveu-me os impressos e pousou no sofá. Quase não abri
o bico. E o devasso, sem concorrente, demonstrou o quanto sabe tagarelar:
“O Dueto para sopro e corda, de Jorge Tufic, é
dividido em duas partes: sonetos e poemas. Ora, Nilto, sonetos também são
poemas”. Fiz ouvidos de mercador. “O velho sabe sonetar, quer com rima, quer
sem ela. E isto o torna bom poeta”. Completei: “Também”. Como se não desse
importância a mim, o visitante voltou à análise: “Alguns sonetos não têm
divisão estrófica, sem justificativa, pois todas as estrofes teriam ponto no
final do último verso”. Tomei-lhe a palavra: “Uma das características da poesia
de Tufic nesse inventário é a homenagem a poetas brasileiros e estrangeiros. E
isto o torna mais encantador”. Com a intenção de me espicaçar, Milani quis
saber se havia homenagem a mim, na coleção. Não vi; isto, no entanto, não o
torna menor aos meus olhos. Pois, quem modela versos como estes, não pode ser
pequeno ou médio; é grande: “O poeta é um
barco / por ele mesmo / desnavegado. / Se acontece haver porto, / outros portos
flutuam / de atlântidas / submersas”.
Chegado o momento de
Luiz Carlos Amorim, entreguei ao vetusto habitante do Benfica os dois volumes:
“Solte o verbo, meu amigo”. E ele me atendeu: “Em Nação Poesia: Antologia poética, a poesia beira a ingenuidade.
Tanto no modo de expor os conceitos (próximo do coloquial), como nos assuntos
tratados”. E soletrou uns versos: “No
meio da madrugada, agarro com tanta ânsia / as asas brancas de um sonho”. Passamos ao segundo tomo: “Impliquei com o
título; nunca li nem escutei o vocábulo jacatirões”. Recriminei-o: “Isso não
tem importância. Por que você não centra sua análise na prosa do poeta? Você
viu como a crônica ‘Meu pé de jacatirão e as borboletas de Quintana’ é recheada
de poesia? Vamos reler um trecho? ‘É
manhã de domingo e o dia está triste, cinzento. O sol não saiu. Abro a janela e
vejo meu pé de jacatirão com suas flores vermelhas, brancas e dessas duas cores
misturadas, muito vivo’”. Cleto me cutucou, como se houvesse alguém na
sala, além de nós: “A última frase me parece incompleta; falta-lhe um verbo,
talvez”. Fiz o papel de embromador: “O estilo de Amorim deve ser este”.
Dei total liberdade ao
meu convidado: “Critique à vontade esse excepcional Carlos Trigueiro”. Pôs-se a
passear pel’O Clube dos Feios: “Você
tem razão: os assuntos tratados pelo contista fogem completamente ao trivial da
literatura brasileira. A começar pelo primeiro conto, o do clube dos feios”.
Analisou cada uma das peças e assim concluiu o comentário: “Trigueiro narra com
a intenção de entreter o leitor. Em vista disso, o dialeto literário utilizado
é o mais comum possível. Até criança na primeira fase do aprendizado escolar
gostará das histórias extraordinárias desse amazonense singular. Nenhum
malabarismo verbal, nada de vocábulos do outro mundo, mesmo quando se refere a
‘hunos de clavas estruturalistas’ ou a ‘contabescer é o destino do homem’”.
Interrompi-o. Precisávamos correr. A secretária do oftalmologista me telefonara
cedo: “Seu Nilto, não se esqueça da consulta, hoje, às 17 horas”.
Observei o relógio:
“Dedique trinta minutos a analisar os contos do jovem Caneca”. Agarrou os Tardios manuscritos juvenis e iniciou a
tagarelice: “Uma das particularidades da dicção de Rafael é a uniformidade. Ele
nunca se excede, nunca se desvia do caminho traçado. O ledor não é levado a
surpresas ou mistérios. Não há atrevimentos inesperados dos narradores, apesar
de um deles chasquear de quem usa clichês”. Eu me embasbacava. Como pode um
crítico ser tão corrosivo? Ao contrário de Milani, vejo no jovem escritor a
melhor das intenções: a de contar histórias curtas, do cotidiano dos
brasileiros, sem a pretensão de demonstrar eruditismo ou de experimentar
linguagens de difícil entendimento. Ele não revela tudo, deixa por conta do
leitor o preenchimento das lacunas, das entrelinhas. Exemplo disso está na
primeira história (“Pulse”): o protagonista (apresentado por voz onisciente),
apesar de ser cidadão normal, que ouve música, trabalha, bebe cerveja, se
mostra como pessoa solitária em crise. E qual seria essa crise? Nem se sabe a
idade do rapaz. Ou se mora só, se tem namorada, onde trabalha, se ainda estuda.
Mirei outra vez o
relógio e anunciei necessidade de me retirar e encarar o oftalmologista. Milani
me sondou, da cabeça aos pés, com desconfiança: “Ou irá espiar o mundo de
Cecília?”
Fortaleza, 2/4 de novembro de 2013.
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