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terça-feira, 22 de abril de 2014

Do Pici ao Quinze (Nilto Maciel)



(Casa onde viveu Rachel de Queiroz, no Pici)




Ganhei de Pedro Salgueiro livrinho (pocketbook) de capa originada de fotografia, cerca de 80 páginas, impresso em Fortaleza. Intitula-se Pici: dos velhos sítios à periferia. Não fosse o subtítulo (ausente na capa), o leitor de fora do Ceará jamais imaginaria Pici como nome de bairro. O povo da capital cearense, porém, sabe muito onde se situa essa parte da cidade. O entendedor de futebol terá outro motivo para falar dela: No Pici está localizado o estádio do Fortaleza Esporte Clube, o grande rival do Ceará Sporting Clube.

Li-o de uma assentada, tão gostoso é. Não por ser também apaixonado por nossa ‘loira desposada do Sol’, nem por ser torcedor do Tricolor de Aço. O danado do livro nos prende desde a primeira linha: “O Pici é um bairro que está localizado na zona oeste da cidade de Fortaleza, capital do Ceará”. Frase ordinária, é verdade. Linguagem de geógrafo ou urbanista. Mesmo assim, o leitor se sentirá atraído pelo relato. Pois são raras as manifestações ‘literárias’ de exaltação à nossa metrópole. Quase todos os críticos da urbe cearense só se sentem realizados quando pintam, com tintas sujas ou pincéis rombudos, a maior ou segunda mais populosa cidade do Nordeste brasileiro.

Lido, pu-lo nas mãos de Maria Eduarda Ardire. Quem é ela? Resumo a história dela comigo: Primeiro recebi mensagem curta, nestes termos: “Oi, Nilto Maciel. Tenho lido suas brincadeiras no blog literaturasemfronteiras. Nunca deixo de cair na gargalhada. Queria tanto conhecê-lo”. Imaginei-a com cerca de 50 anos, um pouco além disso, menos de 80; separada recentemente; aposentada de órgão público; solitária etc. Tudo asneira minha, tudo preconceito. Aparenta 20 anos de idade, não tem namorado, nunca trabalhou, vive com os pais e três irmãos, adora praia, balada e toda a liturgia da juventude de hoje.

Uma tarde, veio me ver, fomos da literatura ao teatro, do cinema à música, viajamos, sonhamos. Ainda na parte da manhã, dera por encerrada a leitura de Pici. “Se quiser, é seu. Por alguns dias”. Levou, leu e voltou. E, na segunda visita dela ao meu rancho, passei a me estender naquelas doidices de ‘frases ordinárias’ e ‘linguagem de geógrafo’.
           
        Impacientava-se a moça com minha lengalenga: “Afinal, trata-se ou não de romance? O senhor se referiu a estilo de geógrafo ou urbanista. Consiste, então, num ensaio histórico?” “Não, nada de estudo científico”. “Então é reportagem?” “Também não”. 

             Levantei-me da cadeira de balanço e arrastei os chinelos até a cozinha, a fim de beber água. De lá mesmo gritei: “O modelo seria o da crônica histórica”. “Será?” Voltei à sala: “A frase excessivamente presa à gramática, protocolar, burocrática não é a tônica da obra. Também não apresenta Pedro dicção debochada ou humorística (tão utilizada por jornalistas engraçados). Quando evoca a si mesmo, fá-lo como pesquisador e repórter (sem sê-lo)”. “E como testemunha?” “Não, ele não participou da evolução da localidade. Sendo assim, a intenção dele (bem realizada) foi ‘contar’ a origem do nome e do bairro, as transformações impostas pelos homens e as realizações de seus primeiros povoadores e proprietários. Além de alguns habitantes especiais, a exemplo de Rachel de Queiroz. Pois se deu lá, na casa por seu pai construída, a elaboração de seus dois primeiros romances”.

Sem cerimônia, a aprendiz de leitora me pediu água. Deixei de lado o opúsculo e me dirigi, de novo, à geladeira. Da cozinha bradei: “Aceita Coca-Cola, cerveja, uísque, cachaça ou cajuína?” Ela não me deu ouvidos e provocou: “Se a gente espremer bem esse objeto, talvez não encontre nem 30 páginas do punho de Pedro. Parte é de Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) e Sânzio de Azevedo, além de Alfredo Weyne, José Liberal de Castro, Rachel de Queiroz, sua irmã Maria Luíza, e memorialistas e cronistas menos conhecidos”. “Isso é muito natural em texto elaborado de acordo com escritos de diversas raízes. Se fossem memórias, possivelmente seria lícito cuidarmos de excesso de citações. Além de tudo, Pedro Salgueiro nasceu em 1964, na pequena Tamboril, e conheceu Fortaleza no início da juventude. O Pici teria se originado do Sítio Pecy, existente desde o século XIX”.

Irritado, fui ao banheiro, sem pedir licença à jovem. Voltei daí a três minutos, completamente ensopado de água fria, da cabeça ao peito. “Meu Deus! O senhor tomou banho?” (Mal acabara de me conhecer, e já me dava tratamento de velho conhecido, em deslavada intimidade). Agarrei a brochura, sem pensar em resposta: “O charme dela se acha exatamente nesse amálgama: informações colhidas em narrativas e depoimentos de antigos habitantes do bairro e pesquisadores vivos, como Nirez”. “Não precisava transcrever seis páginas das memórias de Rachel e Maria Luíza, além de quase todo o conto ‘Tangerine-Girl’”. Fechei o volume, com raiva, e, por pouco, não berrei: “Discordo de sua opinião, menina. As informações contidas em Tantos anos, das irmãs Queiroz, são fundamentais. O conto de Rachel é, quiçá, a única peça literária, de alto valor, a dar ao Pici a condição de lugar onde se desenrola trama aparentemente simples – ilusão e desilusão de uma adolescente. Além de ser composição de fina tecelaria”.

Prestes a me arrepender de ter convidado a estudante a vir à minha residência (“Após a leitura, traga-mo. Conversaremos sobre ele”), bebi alguns goles de água, sosseguei e falei baixinho: “Você deve ser menos exigente, garota. Para você, escrever parece fácil”. “O senhor acha difícil?” “Tão penoso quanto viver no sertão, em tempo de seca”.

Ao se preparar para ir embora, Maria Eduarda me perguntou se eu poderia lhe emprestar O Quinze. “Promete ler e devolver em quantos dias?” Ela pensou e sorriu: “Em quinze. Está bom assim?”

Fortaleza, 18 de abril de 2014. 

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O anônimo (Tânia Du Bois)






“Passado o futuro: tantas máscaras /
o que dizer de um mascarado sem máscara? /
ou de uma máscara (Real)?”
(Pedro Du Bois)

Anônimo é aquele que não revela seu nome; dentro de suas características encontramos aquele que “faz o bem sem saber a quem”, e aquele que não enfrenta o sentimento, com medo de viver e usa a máscara para se esconder num mundo obscuro, sem perceber quando em determinado momento da sua vida se aproxima da verdade das pessoas.  Segundo Alberto da Cunha Melo, “Anônimos // Bem-aventurados os mitos, / em seu tranquilo anonimato, / que sequer se sabem anônimos, / como a moldura de um retrato...”.

O anônimo ressalta a diferença em algo que costuma afetar negativamente a sua vida: sua intenção é estar alerta em relação à sua pessoa e ao seu anonimato, porque conviver entre eles é desafio que pode se transformar em agradável, ou não, revelação. Como em Pedro Du Bois, “... somos máscaras sobre o rosto / sem despertar suspeitas / personagens ambulantes / desempenhando papéis menores”.

Quem saberá os limites da vida em face oculta? O anônimo que fere as palavras esconde o tempo e impede de ser reconhecido. Escuta “cantos onde há gritos e se diz maravilhado” – nos surpreendendo com seu falso lado, ao se apresentar de maneira detalhada, deixando de ser quem é, ao revelar sua falta de coragem para se identificar e assumir sua postura, sem deixar as palavras caírem no chão. Nas palavras de Alphonsus Guimaraens Filho, “... Toma coragem, vai buscando a face / mais oculta das coisas, de onde nasce / a luz que restará inapagada”.

No anonimato, nunca sabemos qual relato nos dá a verdade dos fatos; o sentido do desejo; as histórias – passado ou futuro; as ameaças pela solidão; mas a vida em longos passos mostra ser inevitável esquecer que o anônimo pode se tornar amigo ou inimigo, e que o momento revivido é marcado pela boa ação e ameaçado pela má. Ficando a reflexão de Pedro Du Bois, “o que dizer de um anonimato sem máscara?”

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