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domingo, 29 de abril de 2007

Sobre a poesia de Anderson Braga Horta (Joanyr de Oliveira)


(Anderson Braga Horta)

Em “Toada pra se ir a Brasília” (1), Cassiano Ricardo se confessa impregnado do fastio ante o “azul marítimo”, onde lhe faz mal a paisagem — “Por excesso de azul e sal” — e anuncia peremptório: “Vou-me embora pra Brasília, / sol nascido em chão agreste. / Como quem vai para uma ilha. / A esperança mora a Oeste”. Mas não veio. Jamil Almansur Haddad, tomando o final do citado poema como epígrafe, e lembrando a cantadíssima Pasárgada de Manuel Bandeira, também se revela distanciado amante, dizendo: “Vou-me embora pra Brasília. / Aqui eu não sou feliz. / Lá descobrirei uma ilha. / À sombra dos pilotis.” E, de imediato, arquiteta os planos para a vida nova: “Deixemos a morte e o estrago, / Vamos a um mundo risonho, / Pois se construíram o lago, / Nós construiremos o sonho.” (2) Contudo, assim como o autor de “Jeremias sem Chorar”, Haddad não veio. Quem mais teria cantado a “Capital da Esperança” dentre os que pretenderam vê-la e vivê-la? Não temos conhecimento de outros nomes dentre os nossos poetas dignos de menção. (3)
Anderson Braga Horta, jovem mas já detentor de várias láureas, uma vez aqui se fixando – em 1960 – teve o privilégio de senti-la “de dentro”, depois de considerável vivência e, dada esta circunstância, ofereceu-nos o maior poema de exaltação à cidade nova. É que pôde integrar-se em seu espírito, beber poeticamente não apenas o áspero encanto planaltino, mas todos os seus contrastes e estonteantes singularidades. Deixou-se embeber pela sua magia, dominou o que nela predomina, de natureza abstrata, o seu caráter esquivo ao estranho, e dessa interpenetração nasceu “Altiplano”. (4)

Comunicando-se por via lógica, do primeiro ao último verso (ao todo 140), as estrofes de seu strabalho apresentam situações distintas mas que se complementam, partindo do passado que se perde em priscas eras e penetrando vitoriosamente no amanhã “de nossas esperanças”. Cada situação se ajusta, para o sentido global, para a mensagem pretendida. A esse respeito, cabe lembrar Thiago de Mello quando ensina que “a construção do poema equivale ao processo de “montagem” do filme”, e mais que “As seqüências (verso e poema) devem ser dispostas numa ordem que obedeça ao critério artístico...” (5) Em “Altiplano” sentimos um suave adicionamento de estrofe para estrofe. Inicia-se a primeira a invocar o “sertão só e ríspido” e os “Vegetais cheios de ódio, fitando os céus impossíveis.” Que também impossíveis viriam a revelar-se com relação aos mártires da odisséia, enquanto não chegasse a consagração “post mortem”. E, com os “Dedos retorcidos de séculos”, dedos e séculos materializados nos arbustos sofridos da região, os elementos há pouco referidos dizem da angústia da “Natureza virgem à espera da posse. / Intratável.” Ainda não há vestígios do homem distante e esperado pela terra bruta e incoerente, sequiosa das mãos que a violentariam e, com a mesma intensidade, abismal e implacável. Em sua nervosa espera já se pressentiam, porém, “— hígidas — as covas futuras”. Mas, se a terra prenunciava um sorvedouro de vidas, paradoxalmente abria um túnel, providencial, para a outra margem: “— morte aparente — já se pressentem fluindo em ouro / arquivindouras / fartas torrentes”. Pois “A vida na morte enraíza.” E há o que entendemos como uma confissão de culpa implícita, um autojulgamento (o Poeta é aqui a sintetização do coletivo, quiçá da humanidade inteira) não expresso mas inocultável: “Dos mortos nos adubamos”.

A terceira estrofe (são 11) continua a descrever a paisagem intratável. O fruto nativo — “DIALÉTICOS pequis” — camufla espinhos entre a polpa deliciosa, debalde se levanta “o grito áureo dos tucanos”, arrastam-se os “tatus embutidos” — é a “arisca florifauna”. O cristal, o níquel, as pedras preciosas variegadas — intangidos: “E ásperos minerais irônicos, / no fundo, sorriem, / e esperam”. A ironia da fortuna que se esconde nas profundezas, o sorriso dos minerais que dormem mas se descobrem na superfície (eis Cristalina, bem perto de nós...) a refletir a exuberância da luz e do calor despendidos pelo sol do Planalto.

O Poeta lembra, em seguida, a erosão sobre o território, e o focaliza quando nada resta das elevações que se perderam devoradas, pois ficou, tão-somente, paupérrimo de acidentes geográficos, a face lisa, o Altiplano. “A erosão comera o ventre da terra / e chupara-lhe as lágrimas”; o candango, diluído no solo, verteria lágrimas invisíveis, a soluçar em surdina conquanto oriundo de outras “terras também calcinadas”, espetadas de insensíveis cactos. Como náufrago, o peão oferece as “mãos nodosas”, e entretanto “férreas”; as condições de vida a bater-lhe no peito como aríetes, mas de ânimo forte. Cada qual a regar o solo selvático, a terra propensa às maiores insubmissões. Nas veias o “sangue ralo da anemia” e, sem coerência, as mãos ainda capacitadas ao desempenho da gloriosa quão melancólica missão, “a regar o alheio dia”.

As estrofes se sucedem: agora é a quinta. E os peões começam a desaguar, decididamente. “O terreno está pronto”, os pioneiros eliminam os mapas, urgem novas cartas geográficas porque há verdes caminhos no rosto do Altiplano.

De relance sobre os aspectos formais deste trecho do poema, os olhos registram a sucessão de erres a repercutir som áspero, gutural: as erosões eóleas e as pluviais cavalgando no tempo. (“VENTOS e chuvas corroeram arestas, / dispersaram resíduos, / e o terreno está pronto: esqueleto / à espera da carne. / E vieram os pioneiros / e rasgaram os mapas. / No papel, o embrião: corpo / à espera de uma alma.”) A princípio movidas (as erosões) pela maior ferocidade, de encontro aos óbices das eras cinzentas — rro —, depois com abrandada violência — ram, res. Teria sido intencional ou é involuntariamente que o bardo arma estas gradações sugestivas, estes notáveis elementos? Nos dois primeiros versos a mesma consoante, decrescendo, depois, de intensidade. Em corroeram está o ápice e os tempos mais recuados; em dispersaram, a sílaba imediatamente anterior à tônica é mais aberta e, por conseguinte, menos áspera — são os dias menos distanciados. Vai-se encurtando o fragor. Nos versos 4.º e 5.º, dois erres simples em cada; nas demais estrofes vê-se que nenhuma apresenta mais que um erre — e o quadro está bem próximo de nós. Até então, no palco ermo, os futuros guerreiros se anunciam, timidamente, em flashes.

Agora (estrofe 6.ª) é o êxodo incontido, o “fluxo e o refluxo”. Há os que se debatem impotentes contra a solidão e as armas mudas deste agreste, na condição de semi-escravos brancos. E volvem atônitos aos pontos de origem. Mas predominam os que têm medo pânico de temer, lhes coraria a fuga, e jogam decididos as próprias raízes no Altiplano. “E vieram os primeiros peões. / E vieram / e voltaram / e vieram / no fluxo e refluxo / da fome. / E vieram / e ficaram / plantados, / árvores migrantes / — torcidas de séculos — / enraizando, úberes, dedos / salgando impossíveis céus.” Ou pretendeu o Poeta, numa visão panorâmica dos pioneiros, retratar como um todo, como uma só massa contínua, como um mar eterno de corpos e almas, os que vinham à busca (sem êxito) da fortuna, e morriam e ressurgiam nos seus irmãos a sucedê-los em outras levas? Era o vão reabastecimento aos “impossíveis céus”, os próprios céus vedados aos humildes guerreiros. (O Poeta deixa entrever sua não conformação, seu protesto ante a condenação terreal dos peões e, pessimista, prejulga os céus considerando-os impossíveis aos candangos, assim como o foram em relação aos “Vegetais cheios de ódio...” do “... sertão só e ríspido” anterior ao começo.)

A mais longa das estrofes de “Altiplano” é, de certa forma, ângulo novo no quadro geral. A atmosfera se apresenta, a princípio, inteiramente outra, não se vincula à anterior. As mãos calejadas dos subnutridos dão lugar a destros punhos medievais. “Reis, bispos...”, e há também torres e cavalos – e o tabuleiro a equilibrar ações e reações. Súbito irrompem como ponto de contacto do ontem com o presente – os peões. Os símbolos antigos logo absorvem a realidade atual, ou são por ela absorvidos, caem-se as muralhas entre as situações diversas. E, a complementar, há também o rumor da guerra. A luta põe-se como o grande traço de união. O rei é invulnerável, enquanto os peões descem fulminados para adubar o solo. “É a lei do xadrez”, enfatiza o Poeta. Aqui como lá, hoje e sempre, a lei é a mesma.

O autor de “Altiplano” quer saber, a esta altura: “Mas onde o exército inimigo?” Interpela, porém no contexto se encontra o esclarecimento de que o poeta o fez estando senhor da resposta exata. E, para que as metáforas não sejam pretexto à continuidade do sono de todos nós, grita que “No imenso tabuleiro / há um formigamento de cruzes / anônimas”. Não se tergiverse, pois; não se apertem as pálpebras covardemente, diante da realidade: os peões foram esmagados por todos nós que sobrevivemos. “Subterrâneos / os mortos / suportam o peso / do porvir.”

A estrofe subseqüente desempana outra face do drama. As chuvas se deixam beber pelos poros da terra, são eles todavia “refratários à lama” e, apesar disso, “há lama / nos pés, nas máquinas / nas almas.”

As “câmeras” sorvem agora, sequiosas, os tributários do grande lago. “NA CONFLUÊNCIA das virilhas / o dique / represa os córregos. / Basta um abrir de comportas / e um rio / irrompe em cólera.” O rio naufraga a sua própria placidez, o rio que assiste às lutas, e assiste, contemplativamente, na sua nirvânica imobilidade, os peões dizimados. E outro símbolo veemente aparece e arrebata o leitor do particular para o geral — o Poeta, como num suspiro de alívio que significa haver ainda salvação, que nem tudo é sepulcro e que os semivivos ainda possuem nervos, sangue, alma e indestrutíveis horizontes, proclama que “Na confluência dos párias / um dique / represa as massas.”

Em seguida, a “rosa-dos-ventos” aflora iniludível e consciente de seu papel, em seu “ser” nasce uma pétala. E os “rios do orvalho” — orvalho que é o suor gotejando nos estafantes “canteiros-de-obras” — unímodos se desviam, e o ponto de convergência é o Oeste, e predomina o labor contínuo sobre “o asfalto, o aço, o concreto, / o abstrato.” Como símbolos calados, “Cruz resumindo sacrifícios. / Avião demandando o futuro.” (avião que é a cidade no mapa e que é também a representação dos ideais de um povo sedento, insatisfeito e inconformado). Símbolos, porque a verdade nua e crua, o real “são os mortos, alicerces nossos; / real é o presente, imenso, / bruto / canteiro-de-obras”.

O Poeta revela que se trata de “Contraditória / rosa / explosiva.” Contraditória, pelos seus desníveis dolorosos e por ser a um só tempo majestosa e desumana; singelamente majestosa, desumana por fatalidade mas glorificadora de sua legião de mártires. E “explosiva”? Sim, porque se insurge indomável contra grilhões anacrônicos. Assim,

“De tuas impurezas,
de tuas asperezas,
rosa queremos-te
exata.”

Exata, depurada no amanhã que buscamos.

“No altiplano de nossas esperanças,
rosa-dos-homens
construímos-te futura.”

Anderson Braga Horta construiu, com “Altiplano”, o magno poema da “Capital da Esperança”.

(1) “Montanha Russa”, pág. 153. Editora Cultrix, Rio, 1960.
(2) “Romanceiro Cubano” (“Canções de Brasília”), págs. 75 e 76. Editora Brasiliense, São Paulo, 1960.
(3) Alphonsus de Guimaraens Filho (em seu último livro — “Antologia Poética, 2.ª ed., Editora do Autor, Rio, 1963) e J. Santiago Naud (em “Poetas de Brasília”, págs. 53 a 55, J. de O., Editora Dom Bosco, Brasília, 1962, e em “O Centauro e a Lua”, págs. 93 a 95, Livros de Portugal, Rio, 1964) deram-nos bons poemas “brasilienses”. Não vêm, porém, ao caso, porque se trata de autores radicados na nova Capital.
(4) “Altiplano” (“Correio Braziliense”, 3.2.65 e “Correio da Manhã”, 13-2-65), poema classificado em primeiro lugar em dois concursos, tendo obtido o “Prêmio Olavo Bilac” — 64 e o da Universidade de Cultura Popular (TV) dirigida por Gilson Amado.
(5) “A Estrela da Manhã”, in “Cultura”, pág. 153, Serviço de Documentação do Ministério da Educação, Rio, 1952.

(“‘Altiplano’, Epopéia Brasiliense”, Correio Braziliense, 20-3-65; repr. com alterações, sob o título “Epopéia no Altiplano”, em O Popular, Goiânia, 21-5-72.)
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