O escritor Eugênio Giovenardi milita no verso e na prosa com a desenvoltura de quem sabe o caminho das pedras, em sua caminhada pelo mundo e pelos insondáveis mistérios da metafísica. Mas o seu forte, pelo visto, é o gênero em que melhor se acomoda dentro da linguagem: o romance de ficção, no qual já publicou cinco títulos dos onze que constam de sua bibliografia.
Seu novo trabalho nesse campo saiu em meados de 2011, e se intitula Silêncio. É um romance que, pela proposta de conceitos e desmembramentos de significados, pode ser perfeitamente incluído naquela lista de obras ousadas e bem-sucedidas, embora não muito fáceis de assimilação. O volume, de 198 páginas, em formato 14X21, traz capa de Thiago Sarandy e editoração eletrônica de Cláudia Gomes, com acabamento bem cuidado da Thesaurus, e está disponível nas boas casas do ramo e também pela internet no site da editora.
Todo autor almeja escrever um livro perfeito, mas poucos o conseguem. A tarefa é árdua e espinhosa, por iniciar-se além do mundo real e materializar-se no plano consciente e palpável da natureza humana. Mas Eugênio Giovenardi, neste caso, busca alcançar a proeza do intento com bons resultados. Embora não tenha conseguido de todo livrar-se de referências autobiográficas, contidas, aliás, em seus romances anteriores, neste livro da maturidade o autor de As pedras de Roma se enveredou pelas florestas obscuras do inconsciente e trouxe à luz a história de seres díspares criados à nossa imagem e semelhança; portanto, personagens de carne e osso — em toda a sua extensão física e psicológica. Com exceção de Lídice, que surge como um anjo e, como tal, desaparece, para ao fim e ao cabo da narrativa juntar-se ao protagonista, mas que em momento algum se entrega ao jogo ou controle de seu criador.
A ação se passa em Brasília e arredores, em cenários físicos e extrafísicos, em que Pedro de Montemor é personagem principal e narrador. E ele, com frases curtas e domínio vocabular, descreve na primeira pessoa a sua experiência vivida e, até certo ponto, compartilhada, em flashes ou lampejos de consciência. São angústias e desassossegos a incomodar a visão de um ser atormentado pelas conquistas do progresso em contraste com os recuos de gestão numa administração arcaica, cada vez mais inapta e incompetente. E isso se dá no coração de uma das mais modernas cidades do mundo, ao lado, naturalmente, da insistência de tenebrosos fantasmas a perseguir o trajeto de quem já caminha meio de lado, devido ao peso excessivo de um viver entre as lembranças do passado e as incertezas do futuro. E mais: Pedro de Montemor busca nos mistérios da própria vida uma certeza para seus questionamentos e, como faz com os personagens do romance, nos instiga a acreditar num mundo paralelo situado bem na rota de suas descrenças ou perquirições. Ao contrário de Hamlet, para ele, o silêncio é o limite.
Na construção do romance, segundo palavras do próprio autor, combinam-se episódios verídicos e ficcionais. Ao redor deles, o silêncio fala de maneira intemporal. “O cérebro, envolto pelo silêncio interior e exterior, fabrica associações intermináveis, superpostas e contrastantes de fatos, palavras, gestos, atos e pensamentos, expectativas e desejos produzidos no passado, memorizados no presente e lançados ao futuro.” O silêncio é desordenado. As vozes interiores se atropelam e nem sempre respeitam a ordem e a sequência de sua origem. “A liberdade do silêncio libera o inconsciente e exacerba o consciente.” Toda essa história pessoal é personificada e projetada nos indivíduos e grupos que intermitentemente formam os laços da convivência social.
Eugênio Giovenardi, além de escritor, é também sociólogo, e sabe que a vida se situa mais dentro da visão de um Guimarães Rosa que da de um Paulo Coelho. E que os perigos são numerosos, principalmente para aqueles que trazem, desde sempre, as marcas de uma formação baseada nos princípios da fraternidade entre os homens, da liberdade inalienável do indivíduo, da igualdade de todos os seres humanos e — mais forte que tudo — do respeito a todos os seres vivos deste planeta. E isso parece bastante, mesmo quando colocado de maneira não muito marcada nos entremeios de uma narrativa ficcional pouco linear. De forma insistente e quase obsessiva, o silêncio — que para Montemor é um fim em si mesmo — atravessa as páginas do livro, sem deixar vestígios.
Brasília, 31 de outubro de 2011.
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*João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, tem vários livros publicados e é assíduo colaborador deste blog.
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