(Publicado no Diário do Nordeste, Fortaleza, 22.09.2012)
Dizer
algo sobre O sol de cada coisa, o décimo livro de Batista de Lima, é tarefa que
deleita e que aflige
Tentar verbalizar ideias sobre os poemas deste livro é viver o paradoxo
de querer calar e só sorver, com a subjetividade e o sentimento, o néctar que
se derrama dos versos e, ao mesmo tempo, é viver a provocação de debruçar-se
sobre a obra, munida com as armas da leitura técnica, para iniciar árdua e
minuciosa análise sobre as infindas possibilidades que os versos nos ofertam.
Sobre as infindas possibilidades ofertadas pelos versos de Batista, leiamos, a
título de introdução deste diálogo, o poema Dúvida, que abre a primeira seção
do livro, sob o título: Essa coisa de viver: (Texto I)
E assim me sinto, com panos poucos para cobrir tanto dizer. Nesse enlevo, caminhar sob O sol de cada coisa é deleite pelo prazer do contato macio e suave com a superfície sedosa do tecido poético que veste esta produção lírica do Mestre da Mangabeira; mas, ao mesmo tempo, é aflição pela vontade reprimida de comentar o livro inteiro, parte a parte, texto a texto, verso a verso, palavra a palavra, embora sabendo que isso tornaria quilométrica a escrita desta leitura. Eis, a seguir, pequena amostra do sedoso tecido poético ao qual me referi há pouco, segunda estrofe do poema Ao sopé de mim: (Texto II)
E assim me sinto, com panos poucos para cobrir tanto dizer. Nesse enlevo, caminhar sob O sol de cada coisa é deleite pelo prazer do contato macio e suave com a superfície sedosa do tecido poético que veste esta produção lírica do Mestre da Mangabeira; mas, ao mesmo tempo, é aflição pela vontade reprimida de comentar o livro inteiro, parte a parte, texto a texto, verso a verso, palavra a palavra, embora sabendo que isso tornaria quilométrica a escrita desta leitura. Eis, a seguir, pequena amostra do sedoso tecido poético ao qual me referi há pouco, segunda estrofe do poema Ao sopé de mim: (Texto II)
As duas
faces
Diante do
impasse anunciado, entre o deleite e a aflição, após idas e vindas
desassossegadas pelos volteios e veredas do sol de cada coisa, dei as mãos ao
domador de relâmpagos que habita a obra e, com ele, caminhei sob as chuvas de
abril que molham os versos desse Sol, seguindo rumo às raízes fincadas nas
páginas do livro, para explorar essa coisa de viver, essa coisa de viver a
poesia de Batista de Lima.
Nessa
aventura, deixei para trás as raízes, acalmei o meu desassossego e me deixei
guiar pelo domador, embrenhando-me nos versos em busca do sol que clareia cada
coisa, cada palavra, cada verso desse universo. Assim, deixando de lado os
aportes teóricos, optei por fazer uma apreciação estética livre, movida pelo
prazer da leitura, não se importando, portanto, com uma teoria que a
fundamente. E nenhuma teoria se faz necessária para que possamos apreciar a
beleza de um poema bem gestado, como Retorno ao mais puro olhar: (Texto III)
A mulher
A mulher
Não
falarei aqui de tantas coisas e tantos sois encontrados. Escolhi destacar um
sol apenas: a mulher. Uma imagem fulgurante que habita a palavra de Batista
neste livro. Refiro-me à imagem do feminino que se materializa nas partes da
obra, em especial, no Desassossego. Uma personagem que surge e salta de poema
para poema, ora uma, ora várias. É, pois, este o nosso intento: capturar essa
imagem e apresentar aqui a representação artística de um perfil feminino que se
cristaliza nas páginas da obra. O poema Desassossego, que nomeia a terceira
parte do livro, legitima a leitura em busca desta mulher que, muitas vezes, nem
se mostra explicitamente, apenas se faz desejada e surge, nas páginas do livro,
pelo viés do desejo daquele que fala: (Texto IV)
A imagem
de mulher que o poeta constrói em seus versos é uma mulher-múltipla ou
múltipla-mulher que se revela numa sequência de imagens sinestésicas, como:
olhar de clarim, pele que poreja rosa e carmim, doce pêra, alimento, mulher
música que se espreguiça em pauta antiga, mulher também movimento,
mulher-mergulho, desassossego, mulher-moinho de um poeta que se diz Quixote,
mulher Maria que o levou e o perdeu... Exemplo desta imagem feminina se revela
através do conceito de saudade que o poeta tenta formular no afã de definir a
falta - Saudade: (Texto V)
Trechos
TEXTO I
Não sei com que roupa
Vou vestir o meu dizer
palavras são panos poucos
a cobrir tantos abismos
TEXTO I
Não sei com que roupa
Vou vestir o meu dizer
palavras são panos poucos
a cobrir tantos abismos
TEXTO II
Olhar as coisas em seus lugares
a sensibilidade da árvore
na tranquilidade
da noite enluarada
a cidade dormindo na madrugada
e o mar coçando manhoso
suas costas de acalanto.
Olhar as coisas em seus lugares
a sensibilidade da árvore
na tranquilidade
da noite enluarada
a cidade dormindo na madrugada
e o mar coçando manhoso
suas costas de acalanto.
TEXTO III
Depois de muitos verões/ aprendi a chover/
lagrimáguas/ sangue e seiva/ Tatu na toca sempre fui/ João-de-barro/
João-sem-barro/ depois de muitos trovões/ minhas paredes cederam/ O homem é um
açude/ ventura é sangrar/ chorar é preciso/ Quando perguntei/ por mim/ ninguém
respondeu/ ninguém soube responder/ ninguém soube quem era/ o amestrador de
palavras/ o cultivador de fantasmas/ o guardião dos pardais/ ninguém disse
conhecer/ o que restava apenas/ era um olhar de espanto/ a alegria das
enchentes/ na sangria dos açudes/ no úbere das vacas leiteiras/ na véspera da
parição/ quando perguntei por mim/ mostraram o adubo espalhado/ pelos caminhos
que andei andando/ meu pai esculpido distante/ numa pedreira/ minha mãe
impressa/ na lâmina escura da água/ do açude do pé da serra.
TEXTO IV
Cura-me desta enfermidade/ que é a vida/
envenena-me de esperança/ iludindo-me a cada instante/ para que eu transporte/
este grande fardo/ Enlouquece-me ao amanhecer/ para que nele não se instale/ o
crepúsculo que se debruça/ no meu caminho./ Que meu desassossego seja a minha
herança/ meu transporte e porto de chegada/ e em teu coração/ me esconda da
tempestade/ abre-te pois em portas/ que eu estou de chegada/ Mas não deixes no
entanto me achegar/ conserva-me ao longe e enfermo/ de paixão, loucura e
mal-estar/ para que eu morra/ de viver me estranhando/ por saborear-me em ti
eternamente.
TEXTO V
TEXTO V
Saudade é tua presença estando ausente/ é este poço
seco é este abismo/ no meu passo próximo esculpido/ Saudade é o chapéu do meu
avô/ com as abas pandas de procura/ o sorriso de minha avó num cafuné dilatado/
Saudade é teu olhar de serra ao longe/ lá onde o sol brinca de se esconder/ e a
chuva é súplica de alvíssaras/Saudade é a voz do teu falar/ que se negou a te
acompanhar/ é essa fome de morrer/ por não viver no teu viver/ Saudade é um
conteúdo sem continente/ uma paisagem sem ter quem olhe/ um olhar de um farol
sem luz/ saudade é um poema que se reduz..
FIQUE POR DENTRO
Breves noções acerca do lirismo
De acordo com Massaud Moisés, em seu
"Dicionário de termos literários" (São Paulo: Cultrix, 1974), a
poesia lírica ser revela como sendo a poesia do eu, isto é, a expressão de uma
confissão ou, ainda, a poesia da emoção. Desse modo, através da confissão de
estados d’alma, de sensações anímicas, o poeta comunica ao leitor sentimentos
que dizem respeito às pessoas como um todo. O tom emocional dessa poesia
explicaria, assim, a sua intrínseca relação com a música, pois, esta, meramente
sonora, parece traduzir os contornos íntimos e difusos do poeta, infensos ao
vocabulário comum. Nesse contexto, a presença da metáfora é um dos recursos por
que o poeta visa à expressão de conteúdos vagos da subjetividade sem lhes
alterar a natureza. As palavras e as notas musicais se equivalem, num mundo
vago, incorpóreo.
HERMÍNIA LIMA
COLABORADORA*
Professora da Unifor
Professora da Unifor
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