O brasileiro era para o escritor e jornalista
Eça de Queiroz [1845-1900] um português degenerado. Ou, dito doutra forma, o
português só não era um brasileiro porque faltava a Portugal as condições
climáticas necessárias ao desenvolvimento de um tão raro espécime humano...
Seu brasileiro, contudo, não seria o brasileiro de Minas Gerais, do Mato Grosso, de Pernambuco, de São Paulo, enfim, os que podiam ser vistos flanando pelas famosas ruas do Rio de Janeiro – das quais a Do Ouvidor, por suas características peculiares, corresponderia ao Chiado lisboeta –, mas o brasileiro ricaço que com os seus requintes recém-adquiridos e as suas maneiras endomingadas ia mostrar-se em Portugal e que, tendo consideráveis cabedais tinha também “várias moléstias” das quais a falta de educação e a ostentação não seria a menos perniciosa. Em síntese, um brasileiro caricatural criado para o riso público.
Tudo isto diz Eça do brasileiro em As Farpas, essas catilinárias modernas,
dirigidas não a um individuo em particular, mas a toda uma nação, o que para
muitos e em especial para os brasileiros do Brasil pareceu excessivo e motivou
uma desabrida reação generalizada, especialmente em Pernambuco que ameaçou
torá-lo no cacete se tivesse a ousadia de pisar o nosso solo...
Repositório de verdades amargas, assim o
iconoclasta de “A Relíquia” e de “O Crime do Padre Amaro” explica à
posteridade a natureza dessas crônicas facetas, em grande parte escritas a
quatro mãos com o seu amigo Ramalho Ortigão, mas agora expurgadas dessa
colaboração pela arguta exegese dos organizadores da relativamente recente
edição de “Os Brasileiros” [Editora
Língua Geral, 2007], Eduardo Coelho e Zetho Cunha Gonçalves:
“... As Farpas não têm por costume acompanhar com o seu
lápis estes contornos mais particularmente simpáticos da sociedade que vão
pouco a pouco retratando nestas crônicas. Nós não somos os meigos lisonjeadores
do mundo em que vivemos: o nosso processo não é positivamente o do pintor
Latour debaixo dos cujos amáveis pastéis se idealizavam as feições de todas as
mulheres da Regência que ele retratou. Nós não procuramos o ideal, procuramos
apenas o verdadeiro. Não é tão difícil de achar, mas custo um pouco mais a
expor. Ora, as verdades são como as cabeças de marcela: se não amargam, não
prestam...”
Assim como a França podia gabar-se de ter como
alvo de chacotas o inglês de “larga e aguda suíça em forma de costeleta
aloirada, colarinho alto como um muro de quintal, pé largo como uma esplanada,
e ar hirto”, o português tinha então o brasileiro, um tipo grosso, trigueiro
com tons de chocolate, modo ricaço, arrastando um pouco os pés, burguês como
uma couve e tosco como um pedaço de pau, ar desconfiado e um vício secreto.
Ora, nenhuma qualidade simpática e de fino
relevo se supõe no brasileiro, como não se supõe aos negros corredios cabelos
louros, arremata Eça, que alimenta e engorda a própria verve explorando uma
fatalidade que pode acontecer a todo o mundo, desde que o clima o ajude a
nascer e viver num país que não consente em deixar de roubar, “porque não quer
prescindir do produto do roubo.” Afinal [acrescenta Eça, horrorizado, um tanto
premonitoriamente]:
“... Seria um fato imprevisto na história – uma
nação declarando, pelos seus representantes oficiais e pelos seus tratados –
que não pode deixar de roubar para viver – que a sua fortuna pública conta,
logo desde o começo do ano econômico, com o que lhe produzem os seus
ladrões”...
Brasileiro é para Eça, sobretudo, o português
que volta a Portugal depois de fazer fortuna no Brasil. E, o que é pior, alguém
que se deixa devorar pela preguiça e ri do
brasileiro, mas ainda assim procura viver às suas
custas. De certo modo, ao dizê-lo
tão ferinamente, expressa Eça a opinião, se não geral, reconhecida entre
livre-pensadores e intelectuais liberais.
Como escritor, pertencia Eça não exclusivamente
à sua vontade e ao seu desejo, como o afirmou numa farpa endereçada ao ministro
do império do Brasil na corte portuguesa. Pertence o escritor ao seu tempo e à
sua sociedade. Ele, o escritor, “é menos uma força livremente produtiva do que
um produto forçado – o produto do meio em que nasceu e em que vive”. Por isso
pôde aludir ao direito da sátira como uma das “inatacáveis liberdades do
pensamento humano”.