Desde
pequeno, tenho ouvido (e quem não ouviu?) a antiga pergunta: Quem nasceu
primeiro, a galinha ou o ovo? Minha primeira filha parecia cópia das crianças
de minha infância. Pai, quem nasceu primeiro? A segunda imitava a primogênita.
A terceira seguia os tropeços da segunda. A quarta não queria ficar sem a tão aguardada
elucidação da controvérsia: O ovo ou a galinha? Eu sempre me perdi na resposta.
Escute, filha: o ovo ou o macrogameta é o germe, a origem, o princípio de tudo
na vida de aves, répteis, peixes, etc. Portanto, o ovo é filho da galinha. E
quem terá sido a mãe da galinha? Embasbaquei-me. Talvez tenha sido algum animal
esquisito de asas longas, bico afiado, crista vermelha, porém muito quietinho
no chão, sem nunca dar um voo mais demorado e alto. Bicho de asas incapaz de
voar. A menina voltava ao começo de minha exposição verbal: Então ovo é filho? Sim,
o ovo é o filho da galinha. Quer dizer, é o feto envolto em casca oval. Pedia
ajuda a algum deus da embromação ou da procrastinação “com promessas falazes e
embustes” da conclusão esperada. E me punha a falar do galo, do canto do galo,
da madrugada, da alvorada, do princípio do mundo e da vida. E me lembrava dos
ensinamentos bíblicos do meu tempo de menino? “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus”. Retrocedia ao latim, para impressionar minha filha e tentar ser mais
falaz, mais embusteiro, mais embromador: “In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum”.
Quando
deixava de ser fedelho (tempo da troca do Verbo e de Deus por substantivos do
pecado original), fiz, a mim mesmo, essas e outras interrogações de profundo
teor filosófico. Não sei a razão pela qual adultos muito sabidos, como padres e
professores (talvez me ouvissem a voz interior), tenham tentado me explicar a
origem do ser humano. Tempo de ouvir a alegoria de Adão e Eva, da árvore
proibida, do castigo divino. Intrigado, busquei outros argumentos. Conheci o Homo sapiens, alcancei o Homo erectus. Li outras lendas, outros
mitos, outras explicações, filosofias e resumi para minhas filhas cada uma
delas: Tudo não passa de invenção de escritor ou de falador.
Mais
recentemente, minha neta, de cinco anos de idade, me veio com esta: Quem surgiu
antes, o escritor ou o leitor? Pois saiba o seguinte: não sei a solução dessa
querela, minha eminente filósofa analfabeta. Na verdade, sou um ledor típico.
Pessoa viciada em ler. Mal acordo, leio a hora. E consumo o dia a ler jornais,
bulas, revistas, anúncios, livros, outdoors.
Na tela do computador, leio mensagens eletrônicas repletas de poemas,
contos, crônicas, artigos. Não me interesso por notícias ou comentários a elas. Não sendo diferente dos outros seres humanos,
também sou redator de asneiras, como esta, para deleite ou sofrimento de meus
semelhantes. E tenho certeza de cedo ter aprendido a ler, como é normal, e, só
muito mais tarde, a redigir. Não, não me amestrei na arte de tecer versos ou
prosas. Ainda estou na escola. Continuo aprendiz ou aluno. Como a maioria. Os adestrados
são poucos: Machado de Assis, Fernando Pessoa, Franz Kafka. Ler é fácil. É como
caminhar (para quem tem pernas), falar (para quem tem língua ou não é mudo),
comer (para quem é vivo). Basta aprender o bê-a-bá e sair por aí a soletrar,
feito doido, como eu fazia ainda nos anos iniciais. Varria tudo com a vista, de
paredes (Viva o socialismo!) a carros (Empresa Redenção), estátuas (Dom Pedro I,
Imperador do Brasil), bonés (Casas Pernambucanas), camisas (Ceará, Terra da
Luz). Migrei para pedaços de jornal caídos no chão (Sobe o salário mínimo),
folhas soltas de compêndios (Alma minha gentil, que te partiste / Tão cedo
desta vida descontente, / Repousa lá no Céu eternamente, / E viva eu cá na
terra sempre triste), revistas (O Pif-Paf de Emmanuel Vão Gôgo). E terminei por
me viciar em história, poesia, cinema, teatro, romance, letras, desenhos.
É muito
fácil ler. E muito bom. Tão bom que dá vontade de também garatujar umas
letrinhas. Contar umas narrativas, como as da infância. Porém, não é nada fácil
elaborar escrito artístico. Como dá trabalho! Já falar não é tão difícil assim.
Qualquer um fala. Alguns aprendem a conversar, discursar, pregar, com o mero
pretexto de dizer novidades ou repetir antiguidades: padres, professores,
locutores, oradores, faladores de um modo geral. É o caso de Jesus Cristo.
Nunca elaborou nenhum texto. Só falava. Os outros que copiassem as suas
palavras. Porque, para inventar literatura, não basta conhecer as palavras. É
preciso muito mais. Como aprender gramática (regras ou normas). Ampliar o
vocabulário. Ir dos embustes aos ardis, dos enredos às tramas, das astúcias às
tramóias. Se possível, saber a origem de cada vocábulo, assim como a
transformação.
Ler
muito, para não sair imitando os outros nem repetindo obras de poetas e
prosadores antigos ou clássicos. É preciso também ter boa memória. Sem ela, o
escritor é apenas refletor do cotidiano. Além disso, o candidato a cultor de
letras há de ter muita sensibilidade, visão ampla, capacidade de sentir tudo ao
seu redor, no alto, no chão, no ar e na mente das pessoas. E dos bichos. É
preciso ser sempre novo. Ser de novo Homero, Virgílio, Dante, Camões. Não igual
a eles. É preciso ser inventor. Não de palavras, que quem inventa palavras são
as pessoas nas ruas, nos mercados, nos estádios. É preciso ser inventor de
frases, de versos, de histórias ou não-histórias, de poemas ou não-poemas, de
estilos ou não-estilos, de linguagens. Não apenas como James Joyce ou Guimarães
Rosa.
Para conceber
esta simples crônica, por exemplo, levei horas e dias. As primeiras se
constituíram de uma insônia danada. Ainda deitado, olhos fechados, surgiu a ideia
de rabiscar uma peça literária, cujo assunto fosse... Larguei a cama (tão
gostosa) e caminhei até a sala. Liguei o computador e anotei a primeira frase:
“Desde pequeno, tenho ouvido (e quem não ouviu?)”. Perdi horas a desenhar palavras
e frases. Nunca consigo compor, de uma vez, crônica, conto, poema, artigo, seja
lá o que for. Debato-me, por dias e dias, nessa luta vã com a palavra, como diria
o poeta Drummond. “Cerradas as portas, / a luta prossegue / nas ruas do sono”. Durmo
de novo e termino não esboçando nada merecedor de leitura ou forjando todo tipo
de miudeza imprópria para leitura. Como este escrito.
Fortaleza,
6 de janeiro de 2013.
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