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sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Quem surgiu primeiro? (Nilto Maciel)




Desde pequeno, tenho ouvido (e quem não ouviu?) a antiga pergunta: Quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo? Minha primeira filha parecia cópia das crianças de minha infância. Pai, quem nasceu primeiro? A segunda imitava a primogênita. A terceira seguia os tropeços da segunda. A quarta não queria ficar sem a tão aguardada elucidação da controvérsia: O ovo ou a galinha? Eu sempre me perdi na resposta. Escute, filha: o ovo ou o macrogameta é o germe, a origem, o princípio de tudo na vida de aves, répteis, peixes, etc. Portanto, o ovo é filho da galinha. E quem terá sido a mãe da galinha? Embasbaquei-me. Talvez tenha sido algum animal esquisito de asas longas, bico afiado, crista vermelha, porém muito quietinho no chão, sem nunca dar um voo mais demorado e alto. Bicho de asas incapaz de voar. A menina voltava ao começo de minha exposição verbal: Então ovo é filho? Sim, o ovo é o filho da galinha. Quer dizer, é o feto envolto em casca oval. Pedia ajuda a algum deus da embromação ou da procrastinação “com promessas falazes e embustes” da conclusão esperada. E me punha a falar do galo, do canto do galo, da madrugada, da alvorada, do princípio do mundo e da vida. E me lembrava dos ensinamentos bíblicos do meu tempo de menino? “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Retrocedia ao latim, para impressionar minha filha e tentar ser mais falaz, mais embusteiro, mais embromador: “In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum”.

          Quando deixava de ser fedelho (tempo da troca do Verbo e de Deus por substantivos do pecado original), fiz, a mim mesmo, essas e outras interrogações de profundo teor filosófico. Não sei a razão pela qual adultos muito sabidos, como padres e professores (talvez me ouvissem a voz interior), tenham tentado me explicar a origem do ser humano. Tempo de ouvir a alegoria de Adão e Eva, da árvore proibida, do castigo divino. Intrigado, busquei outros argumentos. Conheci o Homo sapiens, alcancei o Homo erectus. Li outras lendas, outros mitos, outras explicações, filosofias e resumi para minhas filhas cada uma delas: Tudo não passa de invenção de escritor ou de falador.

Mais recentemente, minha neta, de cinco anos de idade, me veio com esta: Quem surgiu antes, o escritor ou o leitor? Pois saiba o seguinte: não sei a solução dessa querela, minha eminente filósofa analfabeta. Na verdade, sou um ledor típico. Pessoa viciada em ler. Mal acordo, leio a hora. E consumo o dia a ler jornais, bulas, revistas, anúncios, livros, outdoors.  Na tela do computador, leio mensagens eletrônicas repletas de poemas, contos, crônicas, artigos. Não me interesso por notícias ou comentários a elas.  Não sendo diferente dos outros seres humanos, também sou redator de asneiras, como esta, para deleite ou sofrimento de meus semelhantes. E tenho certeza de cedo ter aprendido a ler, como é normal, e, só muito mais tarde, a redigir. Não, não me amestrei na arte de tecer versos ou prosas. Ainda estou na escola. Continuo aprendiz ou aluno. Como a maioria. Os adestrados são poucos: Machado de Assis, Fernando Pessoa, Franz Kafka. Ler é fácil. É como caminhar (para quem tem pernas), falar (para quem tem língua ou não é mudo), comer (para quem é vivo). Basta aprender o bê-a-bá e sair por aí a soletrar, feito doido, como eu fazia ainda nos anos iniciais. Varria tudo com a vista, de paredes (Viva o socialismo!) a carros (Empresa Redenção), estátuas (Dom Pedro I, Imperador do Brasil), bonés (Casas Pernambucanas), camisas (Ceará, Terra da Luz). Migrei para pedaços de jornal caídos no chão (Sobe o salário mínimo), folhas soltas de compêndios (Alma minha gentil, que te partiste / Tão cedo desta vida descontente, / Repousa lá no Céu eternamente, / E viva eu cá na terra sempre triste), revistas (O Pif-Paf de Emmanuel Vão Gôgo). E terminei por me viciar em história, poesia, cinema, teatro, romance, letras, desenhos.

É muito fácil ler. E muito bom. Tão bom que dá vontade de também garatujar umas letrinhas. Contar umas narrativas, como as da infância. Porém, não é nada fácil elaborar escrito artístico. Como dá trabalho! Já falar não é tão difícil assim. Qualquer um fala. Alguns aprendem a conversar, discursar, pregar, com o mero pretexto de dizer novidades ou repetir antiguidades: padres, professores, locutores, oradores, faladores de um modo geral. É o caso de Jesus Cristo. Nunca elaborou nenhum texto. Só falava. Os outros que copiassem as suas palavras. Porque, para inventar literatura, não basta conhecer as palavras. É preciso muito mais. Como aprender gramática (regras ou normas). Ampliar o vocabulário. Ir dos embustes aos ardis, dos enredos às tramas, das astúcias às tramóias. Se possível, saber a origem de cada vocábulo, assim como a transformação.

Ler muito, para não sair imitando os outros nem repetindo obras de poetas e prosadores antigos ou clássicos. É preciso também ter boa memória. Sem ela, o escritor é apenas refletor do cotidiano. Além disso, o candidato a cultor de letras há de ter muita sensibilidade, visão ampla, capacidade de sentir tudo ao seu redor, no alto, no chão, no ar e na mente das pessoas. E dos bichos. É preciso ser sempre novo. Ser de novo Homero, Virgílio, Dante, Camões. Não igual a eles. É preciso ser inventor. Não de palavras, que quem inventa palavras são as pessoas nas ruas, nos mercados, nos estádios. É preciso ser inventor de frases, de versos, de histórias ou não-histórias, de poemas ou não-poemas, de estilos ou não-estilos, de linguagens. Não apenas como James Joyce ou Guimarães Rosa.

Para conceber esta simples crônica, por exemplo, levei horas e dias. As primeiras se constituíram de uma insônia danada. Ainda deitado, olhos fechados, surgiu a ideia de rabiscar uma peça literária, cujo assunto fosse... Larguei a cama (tão gostosa) e caminhei até a sala. Liguei o computador e anotei a primeira frase: “Desde pequeno, tenho ouvido (e quem não ouviu?)”. Perdi horas a desenhar palavras e frases. Nunca consigo compor, de uma vez, crônica, conto, poema, artigo, seja lá o que for. Debato-me, por dias e dias, nessa luta vã com a palavra, como diria o poeta Drummond. “Cerradas as portas, / a luta prossegue / nas ruas do sono”. Durmo de novo e termino não esboçando nada merecedor de leitura ou forjando todo tipo de miudeza imprópria para leitura. Como este escrito.

Fortaleza, 6 de janeiro de 2013.  

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