Henrique
Silva Montalbán é um brasileiro vivendo na Espanha. Nesse dia ele está com pressa, só tem meia hora para chegar a uma livraria na Calle de las Flores,
numa ruela cercada de árvores no centro de Madri. Há dias ele tinha encaminhado
um e-mail para seu pai Juan Montalbán, no Brasil, avisando que não ia demorar
em comprar um livro sobre o escritor Roberto Bolaño e despachá-lo num prazo
curto. O pai queria atender ao pedido de um amigo, o livro só estava à venda na
Espanha. Mas o tempo foi passando, e, forçado pelo ritmo insano do cotidiano
madrilenho, Henrique Silva Montalbán não pôde cumprir o prometido. Agora a
tarde caía tão rapidamente como um meteorito. Henrique Montalbán não queria dar
uma nova desculpa.
Ele
deu sorte. Entrou na ampla livraria, pediu o livro a uma vendedora com ar
cansado, conferiu o título Bolaño salvaje, o preço e foi direto ao
caixa. Pagou com cartão de crédito, numa única parcela. Devolveu o boa-noite à
saída. Ganhou a rua. Iria mandar mensagem naquela mesma noite ao pai informando
sobre o êxito da compra.
Ele
deu azar. Tinha andado cerca de cem metros e tomado um atalho por uma ruela
pouco movimentada, quando esbarrou num desconhecido bem mais alto do que ele.
Henrique Silva Montalbán perdeu o equilíbrio, rodopiou e caiu. Nos breves
segundos em que pôde finalmente se levantar e se refazer do tombo ridículo, se
deu conta de que estava sem o livro e sem a carteira. Uma típica ação de um pick-pocket,
como tantas outras nas ramblas no centro da cidade. Bucetaça!, protestou
inutilmente, pois o ladrão tinha desaparecido.
Papa,
Um
negócio aborrecido me aconteceu esta noite. Lamento informar. Ainda tenho o
coração aos tropeços. Fui roubado. Em plena rambla madrilenha. Só o céu
e as infinitas estrelas por testemunha. Um desalmado pick-pocket
levou-me a carteira. E o livro, papa. O livro de Bolaño que eu tinha acabado de
comprar! Não conte à mama.
Bjos,
Henrique
Juan
Echevarria Irrgitú não precisou se esforçar muito para abandonar a cena do
roubo. Logo ele se incorporou à massa de transeuntes numa rua movimentada,
desceu para o metrô, tomou um assento no meio do vagão, apertando o livro
contra seu corpo, aparentando uma postura indiferente. Apalpou o bolso esquerdo
para sentir que a carteira roubada continuava lá. Precisou fazer baldeação em
mais duas estações. Desceu, tomou um ônibus, rodou mais um hora, até que chegou
num bairro da periferia. Subiu pelas escadas os seis andares de um prédio
acinzentado e caindo os pedaços. Lá dentro uma mulher morena de cerca de 25
anos dava mama a um bebê. Juan entrou sem fazer alegria e se jogou num sofá mal
cuidado, uma das escassas mobílias do minúsculo apartamento. Abriu a carteira,
vasculhou seu conteúdo, viu um documento de identidade com a foto do
brasileiro, uma carteira de motorista, uma de sócio da Real Sociedad de Tênis,
e, o que mais o interessava, dinheiro vivo, cerca de trezentos pesos. Depois se
voltou para o livro. Rasgou a embalagem, folheou algumas páginas. Num dos
capítulos Rodrigo Frésan analisa o romance Os detetives selvagens. Juan
Echevarria Irrgitú, um imigrante paraguaio perdido na Espanha, se identifica
com a trajetória errática dos marginais Arturo Belano e Ulises Lima, os
personagens principais do livro. Lê com sofreguidão, até cair no sono. No dia
seguinte ele sai para resolver umas pendências com um comparsa mexicano.
Às
sete da manhã o metrô de Barcelona é o retrato do inferno, como em Tóquio, São
Paulo ou Cidade do México. Juan Echevarria Irrgitú conseguiu entrar num vagão
abrindo espaço aos empurrões e cotoveladas. Mas deixou cair o livro sobre
Bolaño que trazia no bolso da jaqueta. A anciã Maria do Rosário Villalba foi
quem o encontrou. Imediatamente ela cometeu a proeza heróica de resgatar o
livro de um massacre inevitável. Duas estações depois ela desceu e foi se
encontrar com sua neta Pilar Del Rios Villalba, uma linda moça de 18 anos.
Juntas tomaram o caminho do shopping, a duas quadras dali, onde iriam fazer
compras. Pilar Del Rios Villalba entrou numa loja de jeans, gastou duas horas
provando o que melhor caísse em suas curvas bem desenhadas. Maria do Rosário
Villalba, com a paciência típica dos anciãos, ficou esperando sentada numa
confortável poltrona dentro da loja. Abriu o livro sobre Bolaño ao acaso, caiu
justamente numa página em que a crítica Celina Manzoni analisava o conto “Putas
assassinas”. E sem que soubesse explicar o porquê, foi abduzida pela força do
texto escrito com maestria. Como sucede aos muito velhos, Maria do Rosário
Villalba foi traída por um cochilo, deixando o livro cair. Quem o encontrou foi
Pablo Parada Molina, naquele mesmo dia.
Pablo
Parada Molina é vigilante noturno num camping em Barcelona. Naquele dia estava
de folga e decidiu viver uns momentos madrilenhos, visitando uma irmã no
subúrbio. Depois foi comprar uma bota nova no shopping. O tempo era uma
entidade com a qual Pablo Parada Molina convivia muito bem. Ele conseguia
matá-lo perfeitamente, pois, além de um bom leitor, era dado a escrever. Dessa
forma a rotina indolente que constituía seu ganha-pão, e que poderia se tornar
num inferno para, por exemplo, um não leitor, era para ele deveras produtiva e,
diria, fecunda. Naquela mesma noite ele tomou o trem para Barcelona. Abriu
aleatoriamente uma página do livro sobre Bolaño. Era uma passagem em que
Enrique Vila-Matas fazia uma exegese de 2666, o romance póstumo de 1.200
páginas que Bolaño deixou inconcluso. No texto Pablo Parada Molina lê uma
referência aos crimes de Ciudad Juarez ocorridos no México, e que abrem a
narrativa desse incomensurável romance de Bolaño. Pablo Parada Molina
lembrou-se de uma mexicana fodedora que tinha encontrado tempos atrás no
camping. Era uma socióloga de trinta e cinco anos e escrevia ou pesquisava para
uma tese sobre o amante universal, e esse era o pretexto para que transasse com
gatos e cachorros pelo mundo afora. O trem deslizava na noite estival, e não
tardou para que Pablo Parada Molina caísse no sono. Ele acordou quando o trem
dava sinais de que se aproximava de Barcelona.
Foi
preciso que o fiscal de trem sacolejasse Pablo Parada Molina para que ele
despertasse do seu sono profundo. Ele percebeu que o livro sobre Bolaño não
estava mais com ele e soltou um palavrão. Fazia horas que uma sueca
cleptomaníaca, sentada na poltrona defronte para Pablo Parada Molina, tinha
surrupiado o livro. Até então Pablo Parada Molina tinha confundido os olhares
da sueca com propostas oblíquas de sexo noturno. Ingrid Svenka Töldberg era
estudante de psicologia na Universidade de Estocolmo, tinha 19 anos e batia
perna pelo mundo com o objetivo de entender seu problema psíquico. Há pouco
regressara do Brasil, onde tivera um par de experiências pouco agradáveis. Numa
delas tentaram currá-la numa rua escura de Salvador, na Bahia. Ela foi salva
pelo gongo. Ingrid Svenka Töldberg tinha descido do trem a meio caminho entre
Madri e Barcelona, numa pequena cidade que nem consta do mapa. De pronto foi
procurar um albergue, que encontrou. Deitada na cama, sozinha num quarto,
vestida só de calcinhas e sem sutiã, Ingrid Svenka Töldberg abriu o livro sobre
Bolaño numa página ao léu, e era justamente o ponto em que o escritor Edmundo
Paz Soldán falava sobre a família de Bolaño e seus hábitos de escritor. Ingrid
Svenka Töldberg era uma aventureira nata, e logo lhe ocorreu a idéia de visitar
a família de Bolaño na pequena cidade litorânea de Blanes, ali mesmo na
Espanha. Ela anotou um esboço do roteiro da viagem em sua agenda e foi dormir.
No
dia seguinte Ingrid Svenka Töldberg acordou bem cedo, tomou café e seguiu para
a estação de trem. No guichê ela abriu a bolsa, retirou o dinheiro da passagem,
pagou e rumou para o terminal de embarque. O trem tomou o caminho de Madri,
onde seria feita uma baldeação para outra localidade, dali para outra
localidade, e para outra, e outra, até chegar na ensolarada Blanes, no litoral.
No trem Ingrid Svenka Töldberg conheceu o turco Ahmed Alkbahr Seidajin, um
sujeito galante que também estava indo para Madri. Ele falou das maravilhas do
seu país, e Ingrid Svenka Töldberg retribuiu-lhe tecendo loas à friorenta
Suécia. Depois de uma longa e animada conversa, Ingrid Svenka Töldberg foi ao
toilete para dar uma mijada, e o turco Ahmed Alkbahr Seidajin desapareceu sem
deixar rastros, levando o livro sobre Bolanõ.
O
turco Ahmed Alkbahr Seidajin reapareceu no bairro do Chiado, em Lisboa. Lá ele
se encontrou com Al-Mahni, Al-Zahari e Al-Zezhri, três perigosos terroristas
que planejavam executar uma explosão num local bastante movimentado da cidade
lusitana. A polícia desbaratou a quadrilha e o plano foi abortado. Ahmed
Alkbahr Seidajin foi o único que conseguiu fugir. Com identidade falsa, ele
adquiriu um disfarce e partiu para o Rio de Janeiro. Ahmed Alkbahr Seidajin
agora era um inofensivo cidadão indiano que atendia pelo nome de Panjir
Shankar. Ele embarcou num vôo TAM sem dificuldades, e nas poucas vezes em que
foi abordado no check-in da companhia expressou-se num inglês sofrível, porém
passável. Desse modo partiu para o Rio de Janeiro.
Papa,
As
buscas policiais deram com os burros n'água. Eles desconfiam de algum
imigrante, um pick-pocket paraguaio, quiçá brasileiro (rss). É uma
parada difícil para qualquer Sherlock, pois existem milhares nesta cidade. As ramblas
estão infestadas deles, e também de putanas, aí, sim, brasileiras em sua
maioria.
Papa,
desse jeito o português vai se tornar o idioma universal da putaria.
Sinceramente, acho melhor comprar outro livro. Já me conformei com o prejuízo, 24 euros pro inferno.
Bjos,
Henrique
O
avião da TAM sobrevoa o Atlântico e está a apenas duas horas da sua chegada ao
Rio de Janeiro. Panjir Shankar conversa com uma estudante carioca que está
voltando de uma temporada de estudos na Inglaterra. Fernanda Vargas é bonita
sob todos os aspectos, com um diferencial arrasador, é culta e viajada. Panjir
Shankar divide com ela a leitura do livro sobre Bolaño. Cada um defende com
entusiasmo o capítulo que mais os agradou. Fernanda Vargas defende com
entusiasmo um texto do livro que analisa o romance Noturno do Chile. E
Panjir Shankar prefere se debruçar sobre as nuances biográficas de Bolaño e sua
vida de nômade, precocemente encerrada aos 50 anos com sua morte na Espanha
devido a problemas hepáticos. Fernanda Vargas dorme e deixa Panjir Shankar
sozinho com seus pensamentos. Panjir Shankar dorme e deixa Fernanda Vargas
sozinha com seus pensamentos. Panjir Shankar e Fernanda Vargas dormem e o avião
da TAM finalmente se aproxima do Rio de Janeiro. Muitos passageiros se inclinam
para a direita ou para a esquerda, dependendo da posição em que estão na
aeronave, no afã de contemplar das alturas as belezas da cidade. Panjir Shankar
e Fernanda Vargas trocam apertos de mãos, e se encerra ali a breve camaradagem
aérea. Panjir Shankar começa a procurar um vôo que possa levá-lo ao Paraguai
naquele mesmo dia, para novas conexões internacionais. Mas não irá embora sem
provar um pouco as delícias do Rio de Janeiro. Toma um táxi para Copacabana. Ao
deixar o veículo esquece o livro no banco de trás. O taxista Pedro Elias,
codinome “Focinho de porco”, pois tem um narigão enorme, se dá conta do livro
horas depois. Sem saber o que fazer com ele, sem qualquer apreço pela leitura,
pois tudo que consegue ler sem bocejar são as páginas policiais do jornal Extra,
leva o achado para um sebo ali próximo. O dono do sebo paga-lhe uma
quantia irrisória, o suficiente para duas cervejas. O livro passa a ser
propriedade do Sebo Letra Livre, no coração de Copacabana.
É
sábado e Juan Montalbán está fazendo o seu passeio semanal por Copacabana. Um
dos seus pontos favoritos é o Sebo Letra Livre. E é lá que ele encontra o livro
Bolaño salvaje, roubado na Espanha das mãos do seu filho Henrique Silva
Montalbán. Para Juan Montalbán, tudo era apenas uma grande coincidência, pois
ele não tinha como saber que aquela era o livro originalmente furtado. Mas o
fato é que essa história encerra uma moral literária. O livro que fora de
Henrique Silva Montalbán, e de Juan Echevarria Irrgitú, e de Maria
do Rosário Villalba, e de Pablo Parada Molina, e de Ingrid Svenka Töldberg, e
de Ahmed Alkbahr Seidajin, e de Panjir Shankar, e de Fernanda Vargas, e de
Pedro Elias, agora pertencia a ele, Juan Montalbán, que o entregaria ao seu
amigo Antonio Guedes, conforme tinha prometido, mas que poderia vir a ser de
outros e de ninguém.
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