O mal
de certa gente afeita a redigir, na hora de lapidar seus contos e poemas, é
torná-los quase enigmáticos. Não, não é certo usar esse “quase”. Na verdade, se
convertem em signos indecifráveis, semelhantes a fórmulas, ao mesmo tempo cabalísticas
e matemáticas. Conheço muitas dessas pessoas de aparência normal (nada de
cabeças desproporcionais, antenas verdes plantadas na testa, como aqueles
extraterrestres de Hollywood). São idênticas a nós: leem Machado de Assis,
Fernando Pessoa, Graciliano Ramos e também Kafka e Joyce (em português). Vão a
cinemas, teatros, ouvem música clássica, chorinho, Luís Gonzaga. Tomam chope,
conhecem mulheres ou homens, gostam de feijoada, baião de dois e pizza. São
quase (aqui cabe o advérbio) iguais aos outros seres humanos. Quando não chegam
a tanto, se parecem com escritores.
Ficcionistas
novos (na idade) ou principiantes (alguns se iniciam na arte de escrever depois
de maduros, aposentados, desiludidos dos prazeres da carne, do vinho, do queijo
e dos doces) me mandam contos e poemas (devo agradecer aos céus por não produzirem
aqueles romances enormes ou aquelas novelas intermináveis) e pedem opinião. Com
enfado, corto aqui, podo ali, e, cansado, sugiro revisão gramatical. Também me
tratam assim, com essa preocupação profilática, meus amigos mais adestrados no
ofício de burilar (não escrevi burlar) frases, professores de gramática e
língua portuguesa, todos de extrema erudição. Acato suas sugestões, embora nem
sempre consiga efetuar a emundação proposta. Não me zango com eles; pelo
contrário, sou-lhes grato. Não fossem eles, quantas barbaridades eu teria
publicado!
Entretanto,
os pimpolhos e os senhores a quem me referi se inflamam comigo. Uns deixam de me
cumprimentar e saem por aí, zangadíssimos, a me achincalhar: sujeitinho metido
a intelectual, escritorzinho sem cabedal, desconhecido até da própria
família. Até imagino suas
infantilidades: rasgam, queimam, jogam fora os livros de mim recebidos em
doação paternal.
Aprendi
duas ou três lições de podadura verbal. Não apenas no uso da língua, mas também na
elaboração de um estilo e escolha e tratamento dos temas. Não propagarei os nomes de meus
mestres, como não informarei os apelidos dos meus insolentes “alunos”.
Uma
delas diz respeito ao uso reiterado de vocábulos, na mesma frase, na mesma
oração, no mesmo parágrafo, na mesma página. Em meus escritos encontrei
milhares de “mas”, “porém”, “estava”, “era”, “que”, “pôs”, etc. Alertaram-me
desse pecado meus amigos. Como não se trata de erro ortográfico (é só defeito
de estilo), não dei importância ao carão. Além disso, até nos grandes criadores
são encontradas repetências sucessivas de vocábulos e expressões. Vejamos este
trecho de Dom Casmurro: “Pois,
senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é
igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem
consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta
lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se
põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz
nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte
anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos,
mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos
foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de
quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três
fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a
consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. Entretanto, vida
diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela
vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também
exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo
alguma recordação doce e feiticeira”. O
termo “que” aparece onze vezes; “mas”, quatro vezes.
Além de
evitar a repetição de vocábulos, devemos nos esquivar de expressões reproduzidas
em demasia, transformadas em clichês, os ditados, sem falar nos termos chulos e
da moda, as gírias, os jargões.
Assim
também devemos nos comportar em relação às descrições desnecessárias, às
narrações de gestos e atos insignificantes (para a trama), aos adjetivos que servem
de mero adorno, sobretudo os qualificativos de ordem moral (especificamente no
caso de narrador onisciente). O estilo se faz mais límpido e agradável, se nos
dedicarmos a um trabalho de remoção de entulhos nos diálogos. Precisamos
extirpar as falas inúteis, se nada acrescentam à compreensão da narrativa.
Chamemos a isso de benfeitorias. Encurtar a fala do personagem tagarela é
sempre salutar. Isso pode ser feito com a transposição do diálogo direto para o
indireto e, ainda, com o não emprego dos desagradáveis verbos dicendi. A frase
deve ser clara. Nada de deixar o leitor em dúvida. Ou dar a tudo duplo sentido,
como a chamar o leitor de idiota.
Entretanto
(volto ao início desta crônica), não é preciso ser purista, seguir as normas
gramaticais ao pé da letra, escrever à maneira de Camões, Bernardes, Vieira, Castilho.
Ou, pior ainda, aprimorar tanto o estilo, a frase, que o leitor terminará por
nada entender ou por se enredar todo nas malhas de um fraseado excessivamente
obscuro. Sentir-se-á enjoado de tanto malabarismo verbal, de tanto neologismo,
de tanta invencionice. O pior de tudo, porém, se dá quando o escriba se imagina
bem diferente de todos os outros. Acima dos demais, como se escrevesse para
deuses, gênios ou seres imaginários. Objetiva ser enigmista, ininteligível,
ilegível. Certamente tenciona se afastar dos recursos gramaticais e
estilísticos, romper todas as barreiras, ser o anti-Machado, o anti-Graciliano,
o anti-Pessoa. Corre de medo de frases assim: “Uma noite destas, vindo da
cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do
bairro, que eu conheço de vista e de chapéu” (Dom Casmurro). Ou desse modo: “Na planície avermelhada os juazeiros
alargavam duas manchas verdes (Vidas
secas). Ou de Fernando Pessoa: “No tempo em que festejavam o dia dos meus
anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto” (“Aniversário”). Fogem da difícil simplicidade!
Portanto,
nem desleixo, nem esmero demasiado. Um é pobre, feio, sem arte. O outro é similar
ao falso rico: “tem” mansão (só a fachada), carro importado (alugado por uma
semana), jatinho (emprestado). São catedrais de barro. E isso não é arte, é
falsidade, é logro.
Fortaleza,
19/20 de fevereiro de 2013.
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