“Você conhece Moreira Campos? Já leu algum livro dele?”. Recebo, por
meio de e-mail, estas perguntas do amigo e primoroso escritor Nilto Maciel,
imbuído de oportuna, pertinente pesquisa “para mostrar o quanto ignoramos
nossos escritores menos divulgados pela mídia, pela Academia, pelas editoras,
etc.” Com efeito, agora que se apruma a questão, volta-nos à memória o nítido
nome de Moreira Campos, a exemplo de outros que vão sendo insidiosamente
esquecidos ou simplesmente ignorados.
Aponham-se o débito editorial, a omissão das Academias de Letras e outras instituições (universitárias, inclusive) ou entidades culturais, como (sejamos francos) a UBE nacional e suas seccionais, além dos próprios escritores, ocupados consigo mesmos, zelosos de suas “carreiras literárias”, senão que apenas indiferentes à questão dos colegas na berlinda ou carruagem do tempo. A saber-se até onde sobreviverá a memória literária sob a tutela dos confrades. E como acudir a todos, a tantos, a quantos, na poeira do tempo, nos desvãos da desmemória?
Claro, há o fator tempo, os anos que passam e germinam o musgo ou a
pátina do esquecimento, a par com o volume de valores emergentes e também o
enxurro e a mesmice de obras de baixo teor ou mediana qualidade, nacionais e
estrangeiras, que incrementam a dinâmica do mercado editorial e alimentam-lhe a
ganância. Frenéticas, as editoras exploram o filão e abocanham o lucro, impondo
aos autores nacionais as suas míseras condições de acolhida e comercialização.
Mas há, sobretudo, um certo desmazelo cultural no País, inerente ao
resgate de autores valiosos, de ontem e de sempre. O descuido, a negligência, a
ignorância. E quase ninguém se manifesta a respeito, não se faz nada de
produtivo e necessário neste âmbito cultural, daí a pertinência da iniciativa
de Nilto Maciel. Não deixa de ser também um gesto solidário, por solitário que
seja, entreabrindo a cortina do silêncio e da empoeirada e surda indiferença.
A pesquisa de Nilto começa por sua terra-natal, o Ceará, com Moreira
Campos, e bem sabe ele da extensão do problema a outros estados brasileiros.
Uma certa mídia por vezes sacana (canalha, mesmo), de alguma forma
irresponsável, babujando (babando, corrompendo a noção de valor) sobre
obras-abobrinhas, chinfrins, ou meras e momentâneas mercadorias, de rápido
consumo. Supervalorizando algumas baboseiras estrangeiras, entretenimento de
cunho imediato, feito “fastfood” (Coma!, coma!), sobretudo para o ingênuo consumo
jovem ou de um público desinformado, desprovido de senso crítico, até beirando
o ridículo. Entupidos de “comida” do entulho “cultural” alienígena, já não
bastasse o entulho doméstico, e comporta(mentalmente) idiotizados por
maneirismos estereotipados, numa repetida forma de fuga ao natural de si
mesmos.
Coisas da indústria cultural de massa (como se diz) e de entretenimento,
(re)pasto para o rebanho automatizado, movido a gasolina, adrenalina,
estrogênio e testosterona. Ops!, que agora estou extrapolando, e me desculpo,
que a coisa também não é bem assim,
sendo até “natural” que seja como é, e já também por termos sido (nós,
os antigos) o que hoje nos desagrada ao
olhar. E o que vemos? Espelho, espelho meu, como você é feio! Franqueza
honesta, como essa agora, não faz mal a ninguém. E por ser assim a
“naturalidade” das coisas, tais como são, imagine-se se aqui eu começasse a
falar de outros tipos de “combustíveis”, nefastos estimulantes à degradação, e
maior o problema social, o contingente humano à míngua de assistência do poder
público. Bem entendido, seria uma droga que eu assim falasse, pois não? Mas é
disso que estou falando! (das drogas), e não estou copiando bordão de
comediante “stand up” na TV, que já copiou de outros, possivelmente de algum
filmeco norte-americano.
Por outro lado, amesquinha-se a mídia provinciana e já não divulga (ou
divulga mal, até subestimando) os escritores emergentes, de qualidade
promissora. E novos autores ou aqueles que vão se firmando com a literatura,
ainda enfrentam a humana pequenez de uma gente miúda (da mídia impressa e
televisiva), que se pauta por meras idiossincrasias e boicota a divulgação. A
média, a mídia, o meio, a medida, à média luz. Os diversos meios de comunicação
e difusão sociocultural, aos quais se agrega a frenética informação digital. A
Rede. Ou pega-moscas?
Editoras há tão-somente esfomeadas por novidades de momento, ávidas de
lucro (certo, estão no ramo e não vão perder a oportunidade), e por aí relegam
ao limbo boa parte da nossa riqueza literária. E ainda as Academias de Letras,
confrarias girando em torno dos próprios umbigos, sem maior zelo pelo acervo
literário de qualidade — sem falar que, lamentavelmente, acolhem como membros
algumas pessoas pouco recomendáveis ou representativas (políticos de caráter
nada ilibado, por exemplo), e até bruxos escritores de pastiches, com mercado
garantido, em detrimento de literatura mais qualitativa.
E por acaso se pensa que esse público que mal lê e essa parcela de
juventude alienada estejam se importando com isso? Estão se lixando, como de
praxe. Mesmo porque os tempos são outros, e os escritores em questão são
antigos, alguns dos quais não serão resgatados, infelizmente. Permanecerão lá
onde se encontram, no limbo, de fato ignorados, esquecidos ou pouco lembrados.
Oh, tempos! Oh, costumes, diria Cícero, que foi degolado e cuja cabeça e mãos
foram expostas na tribuna do Senado de Roma, do qual era porta-voz. Morto a
mando do cônsul Marco Antônio, seu rival político.
Já por primeiro, o governo de cada estado, bem como o Ministério da
Cultura, têm parte na cadeia de omissões para com os escritores esquecidos, ou
não? Ocorrem-me, a propósito, nessa questão de resgate literário, aquelas
antigas publicações ou co-edições de livros pelo INL, ou também não? Imperativo
o resgate e cultivo de autores como Francisco Carvalho (da Academia Cearense de
Letras) e tantos outros de bom quilate e calibre, todavia olvidados.
Particularmente meio que enfarado com o enxurro e mesmice atual —
ressalvadas as exceções —, e mais seleto com as leituras, venho buscando os
sebos, (re)adquirindo obras e retomando leitura de alguns autores que aprecio,
tais como José Condé, Adonias Filho, Ricardo Guilherme Dicke (acabei de
resgatar o romance “Caieira”, edição
antiga), Herberto Sales, Hermilo Borba Filho, José J. Veiga (contos de seus
dois primeiros livros, que eu não tinha mais). E (acredite!) somente agora
adquiri e vou ler o premiado romance “Emissários do Diabo” (edição de 1974) do
pernambucano Gilvan Lemos; também dele, e com tamanho atraso, intento encontrar
a novela “A noite dos Abraçados”, pelo menos. Estou em busca de reaver obras de
Valdomiro Silveira, Autran Dourado e outros nessa linha do meu agrado. E agora
que Nilto Maciel buliu no baú, sairei a campo(s) pelas obras de Moreira.
Deste autor cearense (traduzidos para o inglês,
francês, alemão, italiano e
hebraico), já uma vez, há décadas,
tive em mãos o livro de contos “O Puxador de Terço”, que pretendo reaver. Sei
de outros títulos de sua autoria, também em volumes de contos, como “A Grande mosca no copo de leite” e “Dizem que os cães vêem coisas” — aprecio títulos assim; a arte
de um livro começa pelo bom título, chamariz para a leitura, sobre uma capa
igualmente sugestiva. Além dos já citados, interessa-me ler “Vidas Marginais” (1949), primeiro
livro de Moreira Campos, e daí “Portas Fechadas”, “As Vozes do Morto”, “Os 12
Parafusos”, entre outros. Bem se vê que Nilto Maciel levanta a lebre dos
autores ignorados, como também da literatura esquecida, e não para que seja
morta, como nas caçadas, mas sim para ser revivida, e não também que esteja morta, estando viva. Um tiro certeiro, digamos
assim, de Nilto Maciel. No alvo da acomodada consciência cultural brasileira.
Como tema para reflexão, fecho este arremedo de ensaio com as palavras
de Gilvan Lemos, que dizia não deixar Recife por dinheiro nenhum do mundo, a
não ser que fosse para voltar ao São Bento do Una, que ele tinha como o seu
paraíso: “Tenho amigos escritores, mas não faço vida literária, isto é, não
pertenço a nenhum ‘grupo’, nenhuma academia, não tenho coluna em nenhum jornal
etc. Prefiro criar canários de briga.”
É isso aí, creio. Publique-se e dê-se livre trânsito pelas cidades, a
quem interessar possa.
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Valdivino Braz é
jornalista, escritor e secretário-geral da União Brasileira de Escritores –
Seção de Goiás.
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