Meu amigo Roberto Schmitt-Prym me ofertou alguns
livros. Um deles é Contos de solidão e
silêncios (Porto Alegre: Editora Bestiário, 2012), de Guilherme Cassel,
gaúcho de Santa Maria. Passei três dias agarrado a ele, o volume. Ao final da
aula do dia 6 de abril, fiz uma proposta às meninas e ao menino da oficina
(mantenho em casa um laboratório literário, para aprendizes): Qual de vocês
quer explorar umas ficções novas, vindas do Sul? E lhes mostrei o objeto.
Sulamita espiou as capas, examinou as abas e se disse muito atarefada. Ana
Clara parecia no mundo da lua (passou toda a aula a olhar para o nada) e não
demonstrou interesse em mergulhar nas estórias. Fabiano não tentou me engabelar:
há dias se via atado a umas narrativas de Breno Accioly. Restou Erykah
Bloom. Sim, queria muito apreciar a novidade. Só precisava de uns cinco dias.
Dei-lhe sete. Analisaríamos a obra no sábado seguinte. E assim o fizemos.
Quando Sulamita Chaves me falou pela primeira
vez de Erykah, eu me senti no apogeu da fama: meu nome finalmente chegava aos
States. A menina é filha de um natural de New York com uma cidadã de Fortaleza.
Nasceu na mesma cidade da mãe, morou dois anos nos Estados Unidos, fala inglês
e português, etc. E gosta de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Dalton
Trevisan e de mim. Quase não consegui dormir. E sonhei em me apaixonar por ela.
E é só, que não estou nesta crônica para falar de paixões tardias ou
retardadas, nem de meus pobres gregotins. Fiquemos na seleção de Cassel e na
conversa daquela tarde recente.
Guilherme Cassel é novato (embora nascido em
1956). Antes da estreia “oficial” (o que se dá com a publicação do primeiro opúsculo),
aparecera em uma coletânea organizada por Luiz Antônio de Assis Brasil. Nestes Contos de solidão e silêncios apresenta
23 (vinte e três) peças, umas bem curtas (“O anjo”, “Sem pressa”, “Somos
assim”, “Dezoito por doze”), outras um pouco mais alongadas. Nenhuma, porém,
com feição de novela ou romance pequeno (refiro-me ao tamanho ou ao número de
páginas). Ou estarei enganado? Pois logo o primeiro drama – “As mortes de
Ramiro Esteves”, de apenas sete páginas – tem a cara de Cem anos de solidão: “Naquela manhã de sábado, quando Ramiro
Esteves passou em frente ao armazém e cumprimentou os conhecidos com um aceno,
ninguém imaginou que ele estava abandonando Santa Clara”. Lembremos o início do
monumento universal do colombiano: “Muchos
años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía”(...).
Erykah Bloom não concordou comigo: “García
Márquez é muito mais pomposo. Além disso, a narração de Cassel se atém
demasiadamente a informações talvez secundárias sobre o protagonista, o lugar e
o tempo”. Não me satisfiz com a conclusão da garota. Esclarecesse aquilo. “Ora,
parece desnecessário informar que Ramiro ‘não assistia às missas’. Todo homem
sem religião é propenso a cometer crime?” Os outros alunos riram. Pedi-lhes
silêncio e respeito à opinião da moça. Sim, o título justificava o mistério do
comportamento do fazendeiro, seus modos, a vida afastada dos outros, quase sem
contato com seus conterrâneos.
Erykah foi mais azeda ainda: “O título parece
impróprio”. Como impróprio? “O autor poderia ter arranjado título menos
enfático. Não precisava denotar tanto o caráter do personagem”. Sugeri “Fogo e
reza”. Ela riu: “Não, esse é feio demais”.
No meio da tarde, convidei meus pupilos à
merenda. Bati palmas (às vezes, chamo a atenção de Alice assim) e apareceu a
secretária: “Pode preparar a mesa, que estamos famintos e sedentos”. Dei, sem
querer, um abraço na tântrica criatura e sussurrei em seu ouvido “você é muito
inteligente”. Ela sorriu, sem jeito: “Muito inteligente é o senhor”.
Contestei-a: “Se fosse, não estaria aqui”. “E onde estaria?” “Talvez na Câmara
dos Deputados, a cochichar aos ouvidos de outro sabichão. Se não, poderia ser
pastor evangélico. Ou, simplesmente, meter-me num navio luxuoso, no Mar Tirreno”.
Deixamos de lado os elogios e os sonhos e nos dedicamos à torta de banana e aos
sucos de melancia e cenoura. “Então esse Cassel é bom mesmo?” Não prestei
atenção à provocação. Só sei de onde proveio: da boca doce e molhada de
Sulamita. A brincar, Ana Clara lhe deu murro leve às costas. Parasse de falar,
enquanto mastigava.
De regresso à sala onde se dão as aulas (às
vezes palestra, às vezes diálogo, outras nem isso nem aquilo), mudei de assunto
(porque sou professor e não posso me deixar conduzir pela vontade dos alunos): “Você
percebeu algum traço de regionalismo em Guilherme Cassel?” Sim, bastava prestar
atenção à ambientação da maioria dos relatos, a caracterização dos personagens,
o comportamento das pessoas: “as mãos nos bolsos da bombacha”; “nos invernos do
Sul, o dia custa a se livrar da névoa”. Fez uma pausa: “Há até uma composição
intitulada ‘Sul’. E as frases sempre a lembrar ao leitor aquela região: ‘Quem
vive no Sul, quando envelhece, naufraga em silêncio’”. Interrompi-a: “Isso é
natural, minha cara. O sulista deve descrever o Sul; o nordestino, o Nordeste;
o escritor do Norte, a Amazônia”. E lembrei o caso José de Alencar, que quis descrever
o Brasil, sem o conhecer todo.
Aproveitei o momento, para sair em defesa da
arte de Guilherme Cassel: Vejo nele as mais amplas possibilidades como
escritor. Sabe lidar com a primeira pessoa (mencionei “Memória”, “Tentação” e outros)
e com a terceira ou o ponto de vista onisciente (perfeito na primeira história).
Consegue descrever perfis, lugares, objetos (sem ser enfadonho), como em “Tentação”:
“voltei devagar, pensando em cada detalhe do que havia acontecido, procurando
fixar na memória cada músculo do cavalo, o preto lustroso do pêlo, a voz do
homem desconhecido, suas mãos, o olhar, o chapéu”.
Fiz mais duas ou três observações a respeito da
linguagem do contista (economia verbal, contenção das falas, narração do
essencial) e me lembrei de pedir auxílio a Assis Brasil (que deve ter sido o
mestre de Guilherme). E encontrei diversos bons (para a minha aula) trechos na
apresentação de quatro páginas. Como este: “Guilherme Cassel opta pela
linearidade frasal, deixando a sofisticação para o que, de fato, importa: os
enredos e conflitos”. Erykah Bloom quis se manifestar. No entanto, já ia a
tarde se encaminhando para a noite. Diga apenas uma palavra ou cale-se para
sempre: “Lindo!” Não sei se se referia ao pensamento de Assis Brasil, se ao
modo de narrar de Cassel, se ao entardecer.
Ao mesmo tempo, Sulamita, Ana Clara e Fabiano me
pediram o tomo, por empréstimo. Olhei de uma só vez para os três. Optei por Ana
Clara. Explico a preferência: ainda não iniciara a leitura de Cien años de soledad. “Então deixe
García Márquez para depois”. E ela, a sorrir, declamou: “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel
Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre lo
llevó a conocer el hielo”.
Eu por pouco não atingi o grau máximo do delírio
tântrico.
Fortaleza, 21 de abril de 2013.
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